O Japão e a goianidade

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Esta viagem ao Japão despertou no cronista sua vocação para o Centro, a redescoberta da sua goianidade.

Sendas do Oriente ou: De volta para casa

Destacado

Crônica publicada dia 16/01/2023 no Jornal O POPULAR de Goiânia (GO).

Crônica em O POPULAR

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Crônica de memórias da infância, no jornal O POPULAR (Goiânia, 29/11/2021)

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Destino Palavra, a entrevista

Veja minha entrevista a Doracino Naves e Edival Lourenço, no programa Raízes Jornalismo Cultural, na PUC/TV – GO.
Você pode adquirir o livro tradicional no link de Livraria Caminhos e o eBook, aqui.

Destino palavra (poemas), 2016

Esta é a íntegra do discurso parcialmente dito na Ube, ontem, dia 18/10/2016. A emoção e o tempo me impediram de dizê-lo todo. Digo-o aqui. Boa noite! disse, bom dia, boa tarde,,,dependendo do seu fuso, amigo do blog Leveza & Esperança.

Saudações a todos. Autoridades e Amigo(a)s.

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Porque Chesterton tinha razão, ao afirmar que  “…a prova de toda a felicidade é a gratidão” –
eis como quero dizer-lhes a frase inicial. No princípio era a felicidade e esta é composta por pequenas alegrias e demonstrada de forma suprema no ato de agradecer. Quero, pois, desde logo, demonstar minha gratidão. Se me sinto feliz hoje (e como me sinto!), devo-o a vocês e em especial a todos vocês que vieram me dar mais alegria com sua presença hoje à noite.

 

Agradecimentos especiais. Especialíssimos – a minha companheira Helenir Queiroz, filhas, genros e netos. Aos amigos e confrades do grupo Lit GoYaZ – onde se prova que “escrever é ato solitário, mas publicar pode (e deve) ser solidário!”. À Ube, na pessoa do nosso presidente Edival Lourenço e da sua leal e fiel escudeira Ana Serra. Ao Zeidler, ao Sérgio (editor e revisor da obra!) com quem se pode dialogar e através dos quais e pelas mãos de quem o meu trabalho só pode se engradecer…

À Ercília, à Sônia Santos, ao Aquino e em especial ao Francisco Perna Filho, que ao lado da querida professora Ercília Macedo-Eckel, e da madrinha Sônia Maria Santos, soube enxergar preciosidades que este criador sequer supõe possuir.DSC_0044.JPG

“A palavra é meu sacerdócio, ela que protege e transforma o ser humano”…
Emblemático que este lançamento se dê na antevéspera do Dia do Poeta e no dia do médico -responsáveis diretos pelas dores do corpo e do espírito.

Como se sabe, tenho lido muito e continuamente me encantado com o poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo. Ele disse uma vez que: “Os livros de poesia (e não só eles) são como viagens, umas com roteiro certo, como as dos homens de negócio e as dos turistas, e outras sem rota determinada, como as dos aventureiros” — Alberto da Cunha Melo.

 Eis-me a propor a todos vocês, amigos e leitores, que viajem comigo.

Viajemos com “Shakespeare, Richard Crashaw, Louis Lavelle, Ivan Junqueira, J. Ortega Y Gasset, Antônio José de Moura, Jorge de Lima e outros que se juntam a Alberto da Cunha Melo, cujas palavras fizeram brotar os poemas de Adalberto de Queiroz. São diversos os versos em intituladas estrofes os que compõem “Destino Palavra”… – [o texto em aspas é da entrevista que dei a Yago Rodrigues Alvim (Opção Cultural)].

Pelo telefone, numa voz de terça-feira de chuva fina na janela, Adalberto foi contando assim miúdo de sua história poética, de suas viagens e do que é feita a obra. Numa das indagações, feito fresta de sol entre nuvens acinzentadas clareou, então, a palavra. Ela, que, num paralelo com a literatura de viagem, é a chegada, o “destino” — como ele mesmo escreve. Afinal, a palavra protege e transforma, sublima o homem. Faz dele mais e mais.

Disse também ao Yago, o que  vos digo agora: um pouco mais de MINHA história e deste livro – “Destino Palavra”.
Diz Miguel Unamuno que “todo ser de ficção, todo personagem poético que um autor cria faz parte do próprio autor.”
Um livro – falava do romance – , mas estendi por minha conta ao poema, o que Flaubert dizia de sua (dele) “Emma Bovary – c’est moi” – que era o próprio, que nele havia vivido, antes de ser personagem “de carne e osso”; assim também repete Miguel:

“Minha lenda! Meu romance! Quer dizer, a lenda e o romance que os outros e eu, meu amigos e meu inimigos, meu eu amigo e meu eu inimigo, fizemos conjuntamente a respeito de mim…Minha história é minha lenda…”

Parodiando, assim posso afirmar que meu “Destino palavra” não é outro senão eu próprio. Um pedaço da alma que lhes vai impressa em bom papel e bem envelopada por uma capa para que, lendo, saibam e conheçam um pouco de mim.

Este é meu terceiro livro individual. Além de ter participado de algumas antologias, uma em São Paulo, “Veia Poética”, e outra em Porto Alegre, “Qorpo Insano” e mais a que lancei no último ano, em Goiânia, “Literatura Goyaz”, escrevi “Frágil Armação” e “Cadernos de Sizenando”.

O Edival, que é uma espécie de irmão mais velho na lide literária e um irmão de quem só recebo bons exemplos, pergunta-me e me provoca a pensar – então, depois de tantos anos “de agruras do comércio, como se sente o poeta com mais ou menos energia para escrever – como um dique represado ou um rio seco?” E recorro à história bíblica com uma resposta enviesada, que dei a ele (no Raízes Jornalismo Cultural) e repito a vocês hoje à noite:

“Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.

Os dias na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assim negada a sua pastora,
como se a não tivesse merecida,

começa de servir outros sete anos,
dizendo: “Mais servira se não fora
para tão longo amor tão curta a vida”.

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Cenas do super-prestigiado evento na Ube/Seção Goiás, 18/10/2016.

A poesia vale a pena – como a Amada no soneto camoniano. Se hoje posso servir à Literatura, eu o faço com a mesma ardor e sincera devoção que o fiz para construir uma carreira de empresário baseada na confiabilidade e na dedicação ao que fazíamos – minha mulher e eu.

Na Nota do editor, eu conto um pouco do trabalho, que é uma busca em minha poesia por novos rumos. Eu nunca parei de escrever; só parei de publicar. E, recentemente, muito me prendi ao poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo. Ele tem me ensinado que temos que nos colocar em xeque. E, a todo tempo, eu tenho feito isso…

Praticamente por toda a obra, eu trabalhei com um material de memória. Eu rescrevi poemas antigos ou retrabalhei temas antigos e até alguns novos. A viagem é uma constante em minha vida. Apanhei esta ideia do livro como viagem, da poesia como uma viagem muito especial, e a segui. Por 30 anos, eu viajei como executivo, diretor de empresa; e, hoje, eu viajo como aventureiro, mas como um aventureiro que não sabe seu destino, que não sabe aonde ir. E, ainda assim e mais por isso, como aquele que traça seu destino. O livro foi trabalhado nesta dinâmica…

Quando com cerca de 40 poemas, eu submeti o rascunho do livro (a obra em progresso) a duas/três pessoas — a quem agradeço imensamente, Ercília Macedo-Eckel e Francisco Perna Filho – esses contribuíram muito, a ponto até de eu retirar alguns poemas, após a conversa (ou a leitura de mensagens eletrônicas) deles – como também devo agradecer a Luiz Aquino e Maria Lúcia Gigonzac, pelo incentivo a prosseguir crendo, imagino, que estava tomando o caminho apropriado, o norte do que hoje é “Destino Palavra”.

Eles me fizeram, dizia: compreender que eu estava no rumo certo e que tinham certas sujeirinhas que precisavam sair. E outra: um dos poemas virou uma folha enorme A3 – uma homenagem a Yêda Schmaltz, que nem está no livro, e que será entregue a algumas pessoas (os mais pontuais) que comparecem a este lançamento – é um poema experimental (Chuva feito enxame de abelhas).

O Francisco Perna Filho, mestre e doutorando em Literatura, me ajudou a enxergar um caminho: definitivamente, não sou um poeta católico, sou um católico poeta. Um homem que sente o peso das seis décadas, diante de um século que se ergue em insensatez: “um velho, conservador e católico que ama a poesia. Sou apenas um católico que escreve poesias e que faz disso um sacerdócio.”

Depois que me aposentei, em 2014, eu escrevo poemas diariamente. Muito mudou em minha vida desde então. Sob a direção espiritual de alguns santos entre nós pecadores, naquele ano, dei uma guinada em minha vida. Redescobri que a minha vida é escrever e isso foi a coisa mais centrada que decidi seguir. Deixei o mundo dos negócios – que nunca me deixará – pois dele trago como Augusto Frederico Schmidt a lembrança de que só me foi possível dar-me ao prazer da leitura e da escrita nesta quadra da vida por conta do dever cumprido em 30 anos de comércio.

Costuma dizer, repetindo Santo Tomás de Aquino, que “ah, as agruras do comércio” dilapidam energias, podem construir ou destruir fortunas e sonhos, mas nunca – jamais poderão destruir a nossa alma. Ei-la exposta através da Arte, da poesia….

Não sou poeta para me diferenciar de nenhum dos meus colegas comerciantes. Sou poeta porque devo cumprir a sina; porque tenho que atender ao chamado de todas as vozes que me procuram à noite, noite-e-dia, para dizer-me palavras; sou poeta porque carrego o “sê-lo” – espécie de manto que nos cobre os ombros – poetas – e que é (ou deve ser) de todo o usual do mais simples dos carpinteiros, fazê-lo mais dourado é enganar-se é ludibriar o que nos lê… Nem por isso, minha poesia não exigirá de quem lê que se proponha um olhar para o Alto, como aquele personagem de Herculano que em meio às agruras da guerra fratricida diz uma trova inesquecível:

“Sem padre [pai], madre ou irmãos
A quem me socorrerei?
A ti, meu Senhor Jesus
Senhor Jesus, me socorrei.”

Neste livro – bem o captou o jovem editor Yago Rodrigues Alvim – o elemento místico está sempre presente, mas o traço fundamental está mesmo na temática da viagem; o título mesmo remete a esta literatura (de viagem), onde o personagem empreita uma aventura e que, por fim, se vê transformado.

Yago R. Alvim – Existe uma sublimação. A palavra transforma o ser humano?

Sim! Disse eu ao jovem editor. A palavra pode transformar o ser humano. Não muda o mundo mas pode mudar o Ser. “Muito lindo o que você disse, eu mesmo assino embaixo”- respondi em entrevista numa tarde de chuvinha fina.  E Até me lembrei de um autor francês que, condenado à prisão domiciliar, escreveu “Viagem ao redor do meu quarto” – falo de Xavier de Maistre é um personagem que consegue viajar através da palavra.
A palavra muda sim, meus caros. A palavra mudou (e moldou) o menino órfão que enviado a um abrigo em Anápolis sempre amou os livros da saudosa biblioteca de Dona Modesta; da biblioteca do Colégio Couto Magalhães – tão bem cuidados por dona Faustina. Um deles marcou a minha juventude. Com ele, eu me resguardei de muitas violências contra mim. O autor é (era) Francisco Marins, “O bugre do chapéu de anta” é uma estória linda. Seu personagem viaja para o interior de Goiás e o que o destaca é o bugre do chapéu de anta.

Pois bem, isso, que hoje se chama “bullying”, na minha época era simplesmente agressão – e foi lendo para mim mesmo e em voz alta para os inúmeros irmãos e colegas que eu deixei de levar muita porrada – era de certa forma sempre salvo pelo livro – por esse e muitos outros livros. Muitos, no recreio, só queriam bater em magrinhos como fui. Por isso, afirmei ao Yago e afirmo a vocês que “a palavra nos protege” e, por consequência de meu desenvolvimento humano e espiritual “a palavra – o ato de ler e escrever é para mim um sacerdócio e salvação”.

Os temas do livro

Ocupo-me da dor – de Nosso Senhor à dor comezinha, que já nem olhamos; com o tema da única certeza humana: a morte, com o destino da humanidade; com a violência e as guerras; com a solidão humana. Essa nossa falência humana e social – um século que mal começou e se despedaça em guerras. Há vários poemas sobre a dor, há um outro que diz de navios, mas que não é bem sobre viagens, descobre-se ali a morte e ressurreição da alma. Eu tenho, também, uma busca mística. Tenho dois poetas santos, com os quais falo todos os dias. Santa Teresa d’Ávila e São João da Cruz, patrono dos poetas e autor de “A Noite Escura” (entre outros), são dois grandes amigos. Eles me inspiram todo o tempo. Estão cada vez mais presentes e conscientes. E foi isto que quis, escrever um livro mais consciente.

Eu começo no passado, na minha infância e vou percorrendo um caminho, que vai até à segunda parte da obra; e elas, as partes, falam disso, de que a palavra é capaz de mudar aquele que escreve e aquele que lê — que lê de verdade, que se aprofunda. “Eu devorei tal livro”, diz da fome da palavra — olha só, isso é lindo! O chamado feito a São João no Apocalipse pelo Anjo – Toma e come o livro. Faço-o a você que me ouve hoje: tomai dileto amigo; tomai-o e comei. Dovarai, seu, meu, nosso Destino Palavra!

Obrigado!

 

Com os olhos do sonho alheio*

CREIO que tinha nove anos, quando isso ocorreu, mas até hoje não consigo esquecer-me. Era hora de ir para a cama, em casa de meu tio, onde passava uns dias de férias. Fechar os olhos para dormir naquele noite causou-me horror. Era uma casa antiga a de meu tio, com esses tetos de madeira amarronzada, onde carunchos pareciam passear livres durante todo o tempo; de dia, não apareciam, sequer a especialistas em telhados e estuques e forros antigos, nunca se faziam notados.

Meu primo havia me dito que no forro vivia uma espécie de abelha noturna, essas que zumbiam e saíam a passear, mal o sol se deitava no horizonte e a noite anunciasse o fechamento de uma cortina mental feita de puro ébano…

O fato é que – não sei que história antiga minha avó contara aquela noite, antes de dormir -, o certo é que tremi só de me encolher no leito estreito que me emprestaram por esses dias – uma cama-de-campanha, que além de tudo rangia ao menor movimento que eu fizesse. Com tal intensidade me impressionei com tudo, que sei dizer-lhe que a noite se tornou lúgubre; como se o repouso fosse negado ao que fechava os olhos para dormir e uma porta se abrisse devagarzinho, girando sob o pivô da entrada do sono, abria-se rangendo vagarosa para dar lugar ao horror de uma viagem a um país sepulcral.

Sem grito algum, mas com um nó na garganta senti-me como alguém que vê um ladrão mas não consegue anunciar a ninguém que o vê; um sonho recorrente de quem tenta conciliar o sono e desejasse gritar sem ter nenhum êxito em espantar seu terror. Era sempre o sonho que precedia ao terror noturno e a vergonha de um lençol molhado na manhã seguinte…

Hoje sei que é por dentro dos olhos que se dorme, dizem os especialistas, mas pressupõe-se que por dentro dos olhos cerrados se possa enxergar apenas visões ternas, calmas e pacíficas; e não o horror de uma viagem a terras indesejadas. Para isso, criaram-se técnicas – como a mais antiga delas e que dizem funcionar em todos os idiomas: contar carneiros. Até hoje, não sei bem porque isso poderia funcionar, o certo é que naquela noite pensei bem próximo à vigília em doces lembranças das brincadeiras do dia com meus primos. Porém, onde cabem carneiros, cabem também pequenos demônios noturnos a espiar-nos por dentro dos olhos nossos, carunchos, cupins que roessem a madeira por dentro com estardalhaço noturno – como se da madeira do estuque e dos olhos tomassem posse.

A cama daquele que aguarda o sono há de ser como funda, como leito em vasto oceano, como quando ainda um infante me balançavam o berço. Assim e não essa terra árida, em que sobre “um leito raso” os olhos dos olhos se transfiguram em ondas com aquela exposição trevosa que assusta o menino exausto mas insone.

Seria o caso de sondar o espaço, em busca da estrela mais brilhante; da que se diz  a que queima, “estrela ardente”. A que espécie de cão esse demônio empreendera tal sociedade a me impedir o repouso?

– Não sabe o menino de dentro dos olhos presa feita responder, meu senhor. Sei que fisionomia de um barqueiro tinha. Sei ainda que o cão tinha lá sua serventia de manter ativos os “pesadelos fantásticos, trementes…

Bem, quando se está em tal situação, não há mesmo como fugir. Então, decidi que o melhor era manter os olhos bem abertos – como os olhos estrangeiros que me fitavam com certa majestade sem enganar-me que um punhal portava.

Era como se… – dir-se-ia: Morfeu estava afastado dessa contenda, à sua gruta recolhido – como se, entre a noite e o menino batalha interminável se travasse. Via umas cavernas ao longe destacadas. Pensava no que me dissera minha avó que há muito se sabe que se espalham cavernas por uma terra não muito distante da casa de meu tio, onde a terra ronca, onde Goyaz planta outra terra por debaixo desta.

E lá estavam, sob a terra real, algo que voava e ao mesmo tempo permanecia intacto: eram os olhos, não quaisquer olhos, mas olhos marcadamente de bicho: felinos e canídeos antes de tomarem a presa com seus dentes vorazes – são olhos tenazes, a resoluta definição da insônia que os olhos por dentro dos olhos do que sonham dormir não se grudam nunca.

Dantesca diria, hoje, dessa visão que tive. Mas quando menino, não disse nada. Foi o silêncio que restou de tudo que olhos não fossem – corpo e tudo mais se confundindo com o lodo em volta. E do quadro todo assim fixado e asfixiado, só os olhos alheios a me seguir sem descanso, como pajens restaram: às avessas do que proteger não podiam.

Foi assim que um percurso de uma noite fiz, na velha casa de meu tio João Queiroz, em que o teto desenhara olhos de tigre, de chacal, de urso – olhos “tenazes e constantes” – fixos olhando tendo por empréstimos os meus…

De manhã, bem cedo, os olhos vermelhos, cansados, a meditar chorando, recebi de minha avó uma xícara com leite de cabra e um afago:
– Deus te faça feliz. Os olhos, menino “quietos, tranquilos, calmos e medonhos”  – todos eles roubam os olhos da gente, por vezes. São noites brancas, embora negras se anunciem. Elas existem porque em meio ao mundo insone aumentou a conta  da imaginação pecaminosa e ensandecida e porque os elfos esconderam-se na cúspide das colunas altas demais para os meninos de sua idade alcançarem. E assim, os insones são tomados por escravo. É preciso que dê nove voltas em torno à chácara hoje e amanhã dormirá feliz…

Hoje, quando recordo dos olhos do sonho, relendo o poema do João, dou-me conta da sabedoria de vovó: são estrangeiros olhos de eternos sonhos – a quem alguém decidiu chamar não-sonhos, insônia. Sempre dou nove voltas em torno ao mundo, antes de fechar os olhos e assim, raro deixo-me guiar por olhos tão medonhos…

Fim.

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(*)Exercício: 'transposição' do poema "Olhos do sonho" de João da Cruz e Sousa para narrativa.

Pai ignorado*

PAI IGNORADO

(Um poema de ocasião.
Ou como dizia Goethe: toda minha poesia foi de ocasião…)

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Eu não acompanhei o enterro
Do pai que nunca conheci.
De minha carne, não erro:
não era nariz do morto que vi.

Albert Camus enterrou o pai dele:
Le premier Homme – um estertor.

A dor dele em Alger, senti. E na Vila Jaiara
debalde procurei, sem nunca tê-lo visto – pai!

Rodasse o mundo inteiro,
não o veria, mas no lago à tarde,
por ordem de santo Ignacio de Loyola
pranto suave verti.
– E dei Adeus! ao pai ignorado…

Eu o vi ao cair da tarde no ribeirão
João Leite – e enterrei-o, sozinho;
feito cai o lírio de Chile,
na secura do meio dia.

Acólito de La Solitude parti.
Parti e nunca mais dele lembrei
nem do registro civil.

Ignorado confronto
A grafia númida –
nímia de meus dias.

Filho do pecado,
no dia dos pais
levo presente
para minha tia.

(A G.M.Q.)
./.
Goiânia, dia dos pais de 2016.

 

A cachoeira*

Das idas a Corumbá de Goiás, posso lembrar-me com alegria. Minha memória guarda um desses passeios como um dia envolto na neblina, vaporzinho descendo sobre a alma plena de alegria, da mesma forma que este café da tarde faz subir a razão em sua fumaça, semelhante ao gênio da lâmpada. Para o menino que fui fazia calor, mas esta lembrança tem algo da friagem dos junhos cinquentões.

A tarde talvez fosse azul,  descobri no poema lido já adulto – em outras circunstâncias -, tateando a cidade grande para evitar que o corpo deixasse a alma se recolher ao covil da falta de alegria. O ondeado verdolengo das matas em torno ao salto d’água se impôs ao olhar do menino esculpido em desafio. Hoje, a onda fraca dos pingos d’água ricocheteiam de uma chuveirada quentinha.

Tremia por dentro, naquela viagem. quando viagem era ir de Anápolis ao Salto de Corumbá; tudo por conta de uma conversa havida no caminho. Haveria lá, diziam os grandes, uma prova de resistência e só alguns de nós conseguiria subir ao mais alto da cachoeira – na verdade apenas um “salto”: o Salto de Corumbá.Salto_Corumbá+Sepia

Eu, que sempre fui um medroso renitente, enxerguei logo o gigante negro e fantasiei a minha impossibilidade de realizar a subida, mentalizei o horror que seria para todos os demais vitoriosos e a chacota em que me tornaria diante, principalmente, das meninas da caravana.

Chegamos ao Salto. Despimo-nos e pedi à minha irmã para manter-me com a camiseta. Autorizado, senti a alegria dessa decisão quando os mosquitos se esparramavam em meio à massa de meninos e meninas, urubus diante de carniça nova. Estávamos todos mais ou menos certos de que haveria provas difíceis pelos sermões antecipados, que nos pregaram antes da aventura. Só não havíamos nos afeitos às precauções naturais dos pequenos habitantes da savana goiana – os menores que mais incomodam, aprenderia mais tarde também.

Despidos braços e pernas, cabeças ao sol, serpenteamos em meio às árvores numa subida que parecia impossível de se completar. A penitência parecia maior porque nós, os pequenos, íamos ao rabo da fila indiana e sempre sobrava uma cipoada de um mais atrevido que segurava o galho até ao exato minuto da nossa passada… e seguia sorrindo para alternar-se com outro gaiato que abriria caminho à meninada.

Por dentro de mim, já havia tantas reclamações quanto arranhões no rosto. O que me salvou foi aquela camiseta que, embora puída, livrou-me de mais uma cicatriz entre as sete adquiridas à peine – o suficiente para tornar-me o homem que escreve esta croniqueta.

Finalmente, chegamos ao topo. Tendo obtido o êxito que os grandes esperavam ou desejavam que eu não conseguisse, senti-me um completo mateiro em meio aos maiorais. Deu-se, entanto, que não estava a missão terminada. Lá do alto, começaram os graúdos a escorregar pelo mato, descendo o longo declive feito tivéssemos cada qual uma prancha sob seu corpo.

– Valha-me, deus, pensei!

Nem tempo de uma prece tive quando me senti empurrado ladeira abaixo. Aos poucos, venci o barranco e a camiseta velha parecia um trapo pronto para virar pano-de-chão, quando a água fria do rio Corumbá me gelou as carnes e o espírito. Que alívio!

Nunca mais me esqueço de que um salto não é uma cachoeira e que mosquitos não gostam de certas horas do dia à flor-d’água. Ali fiquei tiritando calado e pensando: “que despautério ser da “banda dos pequenos”; mas a água caindo branca do alto da cachoeira vale-me o dia, até mesmo com os arranhões que levei comigo vida adentro.

Deram-nos um pão com salame e uma caneca de suco. Foi tudo o que se salvou daquela tarde, mas nem por isso o café que me aquece nesta tarde de julho deixa-me a alma atrelada ao corpo – a presa de um covil. Não!

Sorrio por dentro, mangando do menino medroso que visitou o Salto do Corumbá pela vez primeira, sabendo que dele não puderam maldar os mais crescidos.

(*) Ao amigo, poeta-cronista Luiz de Aquino. Reescrita em 20/3;2017.

Caderno de rascunhos (draft xxvii)

O Tarol*
I
Minha memória musical
alhures em remota escola
toca tarol na banda marcial
e clama o direito de parola.

A sonoridade perdida,
inclusive nos poemas;
– Mas jamais si desirée’ –
“…de la musique
avant toute chose;
et pour cela préfère
L’Impair…”

Voltas, idas e vindas
co’a rara matemática
musical do regente:
muito tempo ainda
há de ensair na mente;
antes que o tio violeiro –
o nome me emprestara;
e sua viola de doze cordas
mostrasse – bem antes
das guitarras na igreja
iconoclastas – e nem assim
aprendi a tocá-las…

O incapaz de dó maior
vai tocar tarol! – determinou
o maestro ante o desafinado
contralto: capataz do coral.

II
Em compensação, a Física
toca bem – é outra coisa
matéria mais definida –
maçã bem mais vadia
caída bem direitinho
em meu 1º. caderno
do ginásio – aquela
que caindo n’alma
para sempre…

A música, entanto,
sempre ligada n’alma
sabe-se Ímpar; cabeça
é maior que 7 notas
e suas variações –
Et pourtant‘ fala à alma:
(#) sustenidos & bemóis (b)
desafinado canto alto:
Staccato‘ – para sempre
às partituras audíveis
sorvidas, outro toca
instrumental vário.
+++++
Drafts xxvii para Cadernos II.