A cachoeira*


Das idas a Corumbá de Goiás, posso lembrar-me com alegria. Minha memória guarda um desses passeios como um dia envolto na neblina, vaporzinho descendo sobre a alma plena de alegria, da mesma forma que este café da tarde faz subir a razão em sua fumaça, semelhante ao gênio da lâmpada. Para o menino que fui fazia calor, mas esta lembrança tem algo da friagem dos junhos cinquentões.

A tarde talvez fosse azul,  descobri no poema lido já adulto – em outras circunstâncias -, tateando a cidade grande para evitar que o corpo deixasse a alma se recolher ao covil da falta de alegria. O ondeado verdolengo das matas em torno ao salto d’água se impôs ao olhar do menino esculpido em desafio. Hoje, a onda fraca dos pingos d’água ricocheteiam de uma chuveirada quentinha.

Tremia por dentro, naquela viagem. quando viagem era ir de Anápolis ao Salto de Corumbá; tudo por conta de uma conversa havida no caminho. Haveria lá, diziam os grandes, uma prova de resistência e só alguns de nós conseguiria subir ao mais alto da cachoeira – na verdade apenas um “salto”: o Salto de Corumbá.Salto_Corumbá+Sepia

Eu, que sempre fui um medroso renitente, enxerguei logo o gigante negro e fantasiei a minha impossibilidade de realizar a subida, mentalizei o horror que seria para todos os demais vitoriosos e a chacota em que me tornaria diante, principalmente, das meninas da caravana.

Chegamos ao Salto. Despimo-nos e pedi à minha irmã para manter-me com a camiseta. Autorizado, senti a alegria dessa decisão quando os mosquitos se esparramavam em meio à massa de meninos e meninas, urubus diante de carniça nova. Estávamos todos mais ou menos certos de que haveria provas difíceis pelos sermões antecipados, que nos pregaram antes da aventura. Só não havíamos nos afeitos às precauções naturais dos pequenos habitantes da savana goiana – os menores que mais incomodam, aprenderia mais tarde também.

Despidos braços e pernas, cabeças ao sol, serpenteamos em meio às árvores numa subida que parecia impossível de se completar. A penitência parecia maior porque nós, os pequenos, íamos ao rabo da fila indiana e sempre sobrava uma cipoada de um mais atrevido que segurava o galho até ao exato minuto da nossa passada… e seguia sorrindo para alternar-se com outro gaiato que abriria caminho à meninada.

Por dentro de mim, já havia tantas reclamações quanto arranhões no rosto. O que me salvou foi aquela camiseta que, embora puída, livrou-me de mais uma cicatriz entre as sete adquiridas à peine – o suficiente para tornar-me o homem que escreve esta croniqueta.

Finalmente, chegamos ao topo. Tendo obtido o êxito que os grandes esperavam ou desejavam que eu não conseguisse, senti-me um completo mateiro em meio aos maiorais. Deu-se, entanto, que não estava a missão terminada. Lá do alto, começaram os graúdos a escorregar pelo mato, descendo o longo declive feito tivéssemos cada qual uma prancha sob seu corpo.

– Valha-me, deus, pensei!

Nem tempo de uma prece tive quando me senti empurrado ladeira abaixo. Aos poucos, venci o barranco e a camiseta velha parecia um trapo pronto para virar pano-de-chão, quando a água fria do rio Corumbá me gelou as carnes e o espírito. Que alívio!

Nunca mais me esqueço de que um salto não é uma cachoeira e que mosquitos não gostam de certas horas do dia à flor-d’água. Ali fiquei tiritando calado e pensando: “que despautério ser da “banda dos pequenos”; mas a água caindo branca do alto da cachoeira vale-me o dia, até mesmo com os arranhões que levei comigo vida adentro.

Deram-nos um pão com salame e uma caneca de suco. Foi tudo o que se salvou daquela tarde, mas nem por isso o café que me aquece nesta tarde de julho deixa-me a alma atrelada ao corpo – a presa de um covil. Não!

Sorrio por dentro, mangando do menino medroso que visitou o Salto do Corumbá pela vez primeira, sabendo que dele não puderam maldar os mais crescidos.

(*) Ao amigo, poeta-cronista Luiz de Aquino. Reescrita em 20/3;2017.

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