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O jornalista e romancista Diogo (Briso) Mainardi é um escritor, produtor, roteirista de cinema e colunista brasileiro – diz-nos a enciclopédia online. A partir de sua intensa atividade na revista Veja e, mais recentemente, no portal O Antagonista ficou conhecido por sua combatividade política contra Lula e Dilma, principalmente, mas não apenas…
Antes de A QUEDA, Diogo escreveu e publicou vários livros, tendo inclusive arrebatado o prêmio Jabuti (1990) por “Malthus” (1). A literatura tornou-se secundária para Mainardi; o jornalismo, não; embora o que faça em A QUEDA seja literatura de erudição.
A história que se conta em passos numerados (1-424) começa pelo arrebatador:
“1 Tito tem uma paralisia cerebral. “
Para contar a história do filho Tito, Mainardi recorre ao vasto conhecimento acumulado em seus 54 anos de vida de leitor e jornalista. O diálogo com o leitor se estabelece na evocação dos fatos que marcaram o nascimento e o erro médico que levou à constatação “Tito tem uma paralisia cerebral”. O primogênito de Anna e Diogo centra-se, a partir de então, na vida e na história contada como o protagonista por excelência – o que conduz a teia do enredo familiar, que se ilustra com leituras, artes e idéias…
Idéias (sim, escrevo em desacordo ao Acordo ortográfico que nos impuseram!) –- dizia: idéias que são instigantes em Mainardi. Seguindo os passos do “filho deforme“, o pai narrador se nos mostra por inteiro, com a virtudes e o talento que o caracteriza como ser humano – o pai que aceitou “com naturalidade, com deslumbramento, com entusiasmo e, principalmente, com Amor” o filho Tito. Para Diogo,
“Desde o nascimento de Tio, em 30 de setembro de 2000, tornei-me um homem miniaturizado, sem rosto e sem identidade, como no quadro de Canaletto. O que me caracteriza é a paternidade. Sou apenas um homem que acompanha eternamente a própria mulher ao parto de seu filho.
“Sou o pai de Tito. Só existo porque Tito existe”.
O amigo de Paulo Francis e Ivan Lessa – que diz ter desistido da escola de Economia de Londres para ler mais -, tem erudição suficiente para nos conduzir numa caminhada de tantos e tão emocionantes passos. Mas o que parece fácil como enredo de livro não deve ter sido (e não o foi, como constatará o leitor ao final da leitura, d’A QUEDA) como vivência do Amor diário, aquele do trabalho miúdo de que nos fala o poeta Alberto da Cunha Melo em seu poema
ERGONOMIA**
**Alberto da Cunha Melo
O grande trabalho é do amor
sem bronzes, sem assinaturas,
no ar do espaço, na hora do tempo,
pólen de Deus nas criaturas,
a palavra quase sem eco
a injetar humos no deserto,
Mãos de franciscos, de terezas,
que repartem, ocultamente,
suas migalhas sob as mesas,
ou energia sem fronteiras,
que acende todas as estrelas.
É preciso saber ler Diogo Mainardi. Os passos do filho e as dificuldades de comunicação são os desafios enfrentados e a “energia sem fronteiras” dos Mainardis, pois “a paralisica cerebral une” (passo 182, p.73) – como uniu Karel Bobath e Berta Busse (ortopedista e professora de ginástica, respectivamente). Karel e Berta fugiram da Alemanha de Adolf Hitler porque eram judeus. Em Londres, desenvolveram um programa fisioterápico para o tratamento da paralisia cerebra, conhecido como “Conceito Bobath”. Anna e Diogo se uniram em torno da paralisia cerebral de Tito e, com a chegada do segundo filho (Nico), os Mainardis dão ao mundo uma grande lição de ergonomia – a ergonomia do amor
que repartem, ocultamente,
suas migalhas sob as mesas
E não são qualquer migalhas literárias – de John Ruskin (arte) a Ezra Pound, de Proust a Giacomo Leopardi (literatura) e Dante Alighieri; dos quadrinhos ao cinema, de Lou Costello a James Stewart; de Josef Mengele a Simon Wiesenthal – podemos colher muito mais que “migalhas sob as mesas dos Mainardis”, pois estamos diante da leitura erudita dos 424 passos, numa miríade de informações que tem um cimento – o Amor.
E se o autor diz não ter crença nenhuma, o leitor católico há de ser tomado (como Proust citado por DM) por “um sentimento de felicidade porque as caminhadas pelas lajotas desiguais de Veneza” ou das garagens do Rio de Janeiro – nos passos de um pai amoroso ao lado e segurando, protegendo, pacientemente um fiho deforme. Eis uma história que pode ser lida como uma metáfora da misericórdia que o Pai Eterno tem conosco, seus filhos deformes e com “defeitos no sistema extrapiramidal” desde A Queda de Adão e Eva.
Por isso e muito mais, recomendo os 424 passos como livro a ser lido, meditado e admirado, pois é livro que faz de um potencial inferno um paraíso – como no poeta fundador da língua italiana (Dante Alighieri):
“L’amor che move il sole e l’altre stelle
(Paradiso XXXIII,145)
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Fontes: (1) Wikipedia – obras de Mainardi: Malthus (1989), pelo qual ganhou o Prêmio Jabuti em 1990.[10];
Das idas a Corumbá de Goiás, posso lembrar-me com alegria. Minha memória guarda um desses passeios como um dia envolto na neblina, vaporzinho descendo sobre a alma plena de alegria, da mesma forma que este café da tarde faz subir a razão em sua fumaça, semelhante ao gênio da lâmpada. Para o menino que fui fazia calor, mas esta lembrança tem algo da friagem dos junhos cinquentões.
A tarde talvez fosse azul, descobri no poema lido já adulto – em outras circunstâncias -, tateando a cidade grande para evitar que o corpo deixasse a alma se recolher ao covil da falta de alegria. O ondeado verdolengo das matas em torno ao salto d’água se impôs ao olhar do menino esculpido em desafio. Hoje, a onda fraca dos pingos d’água ricocheteiam de uma chuveirada quentinha.
Tremia por dentro, naquela viagem. quando viagem era ir de Anápolis ao Salto de Corumbá; tudo por conta de uma conversa havida no caminho. Haveria lá, diziam os grandes, uma prova de resistência e só alguns de nós conseguiria subir ao mais alto da cachoeira – na verdade apenas um “salto”: o Salto de Corumbá.
Eu, que sempre fui um medroso renitente, enxerguei logo o gigante negro e fantasiei a minha impossibilidade de realizar a subida, mentalizei o horror que seria para todos os demais vitoriosos e a chacota em que me tornaria diante, principalmente, das meninas da caravana.
Chegamos ao Salto. Despimo-nos e pedi à minha irmã para manter-me com a camiseta. Autorizado, senti a alegria dessa decisão quando os mosquitos se esparramavam em meio à massa de meninos e meninas, urubus diante de carniça nova. Estávamos todos mais ou menos certos de que haveria provas difíceis pelos sermões antecipados, que nos pregaram antes da aventura. Só não havíamos nos afeitos às precauções naturais dos pequenos habitantes da savana goiana – os menores que mais incomodam, aprenderia mais tarde também.
Despidos braços e pernas, cabeças ao sol, serpenteamos em meio às árvores numa subida que parecia impossível de se completar. A penitência parecia maior porque nós, os pequenos, íamos ao rabo da fila indiana e sempre sobrava uma cipoada de um mais atrevido que segurava o galho até ao exato minuto da nossa passada… e seguia sorrindo para alternar-se com outro gaiato que abriria caminho à meninada.
Por dentro de mim, já havia tantas reclamações quanto arranhões no rosto. O que me salvou foi aquela camiseta que, embora puída, livrou-me de mais uma cicatriz entre as sete adquiridas à peine – o suficiente para tornar-me o homem que escreve esta croniqueta.
Finalmente, chegamos ao topo. Tendo obtido o êxito que os grandes esperavam ou desejavam que eu não conseguisse, senti-me um completo mateiro em meio aos maiorais. Deu-se, entanto, que não estava a missão terminada. Lá do alto, começaram os graúdos a escorregar pelo mato, descendo o longo declive feito tivéssemos cada qual uma prancha sob seu corpo.
– Valha-me, deus, pensei!
Nem tempo de uma prece tive quando me senti empurrado ladeira abaixo. Aos poucos, venci o barranco e a camiseta velha parecia um trapo pronto para virar pano-de-chão, quando a água fria do rio Corumbá me gelou as carnes e o espírito. Que alívio!
Nunca mais me esqueço de que um salto não é uma cachoeira e que mosquitos não gostam de certas horas do dia à flor-d’água. Ali fiquei tiritando calado e pensando: “que despautério ser da “banda dos pequenos”; mas a água caindo branca do alto da cachoeira vale-me o dia, até mesmo com os arranhões que levei comigo vida adentro.
Deram-nos um pão com salame e uma caneca de suco. Foi tudo o que se salvou daquela tarde, mas nem por isso o café que me aquece nesta tarde de julho deixa-me a alma atrelada ao corpo – a presa de um covil. Não!
Sorrio por dentro, mangando do menino medroso que visitou o Salto do Corumbá pela vez primeira, sabendo que dele não puderam maldar os mais crescidos.
O Tarol*
I
Minha memória musical
alhures em remota escola
toca tarol na banda marcial
e clama o direito de parola.
A sonoridade perdida,
inclusive nos poemas;
– Mas jamais si desirée’ –
“…de la musique
avant toute chose;
et pour cela préfère
L’Impair…”
…
Voltas, idas e vindas
co’a rara matemática
musical do regente:
muito tempo ainda
há de ensair na mente;
antes que o tio violeiro –
o nome me emprestara;
e sua viola de doze cordas
mostrasse – bem antes
das guitarras na igreja
iconoclastas – e nem assim
aprendi a tocá-las…
O incapaz de dó maior
vai tocar tarol! – determinou
o maestro ante o desafinado
contralto: capataz do coral.
II
Em compensação, a Física
toca bem – é outra coisa
matéria mais definida –
maçã bem mais vadia
caída bem direitinho
em meu 1º. caderno
do ginásio – aquela
que caindo n’alma
para sempre…
A música, entanto,
sempre ligada n’alma
sabe-se Ímpar; cabeça
é maior que 7 notas
e suas variações –
‘Et pourtant‘ fala à alma:
(#) sustenidos & bemóis (b)
desafinado canto alto:
‘Staccato‘ – para sempre
às partituras audíveis
sorvidas, outro toca
instrumental vário.
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Drafts xxvii para Cadernos II.
Cadernos de Sizenando – 2 (GEOGRAFIA) – Adalberto de Queiroz.
Geografia I
Quando a Vila Jaiara era do mundo
O centro vital; se mais longe houvesse,
Lá chegara, aos saltos, de susto tomado
Em mim mesmo; silente rezava o missal.
Corria pelos campos – da savana, cerrado.
O medo do sistema heliocêntrico
Ainda não perdera: o medo de ser
Só. Eu vivia com meus irmãos e irmãs –
Éramos uma centena de bichinhos
Em torno de nossa mãe adotada,
A quem chamávamos de Senhora.
E em torno dela, tudo girava, girava…
Os grandes mandavam-nos, sorrateiros,
Andar pelo cerrado em busca de tudo:
Gabirobas, cajuzinhos, goiabas …
Na Vila Jaiara havia tanta coisa mais.
A casa de Helena; de deuses onde doces.
Que à caminhada tornava clara para nós.
Centro luminoso em que a ceia do Senhor.
Não havia São Paulo ou Rio de Janeiro –
No máximo: Belo Horizonte, Araxá
Povoavam nossos sonhos.
E talvez Ouro Preto e Divinópolis –
Onde Dora reinava…
– Goiânia, São Petersburgo e Tegucigalpa – só no Atlas.
Anápolis era outra estória: a cidade, o comércio longe demais…
Ali na Jaiara estava o centro de tudo
e no centro de tudo o amor:
Laíde Epifânia me nomeara “Maninho”.
Naquele tempo, na nossa vila, não passava um rio.
Mas havia a fábrica de tecidos, onde Jorge –
Noivo de minha irmã – tecia a união e afeto
E me ensinava a andar de bicicleta.
Do Vietnã, só soube no ginásio.
Ψ.Ψ.Ψ.Ψ
Fonte: Cadernos de Sizenando, vol. II, 2016 (no prelo).
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