Com os olhos do sonho alheio*


CREIO que tinha nove anos, quando isso ocorreu, mas até hoje não consigo esquecer-me. Era hora de ir para a cama, em casa de meu tio, onde passava uns dias de férias. Fechar os olhos para dormir naquele noite causou-me horror. Era uma casa antiga a de meu tio, com esses tetos de madeira amarronzada, onde carunchos pareciam passear livres durante todo o tempo; de dia, não apareciam, sequer a especialistas em telhados e estuques e forros antigos, nunca se faziam notados.

Meu primo havia me dito que no forro vivia uma espécie de abelha noturna, essas que zumbiam e saíam a passear, mal o sol se deitava no horizonte e a noite anunciasse o fechamento de uma cortina mental feita de puro ébano…

O fato é que – não sei que história antiga minha avó contara aquela noite, antes de dormir -, o certo é que tremi só de me encolher no leito estreito que me emprestaram por esses dias – uma cama-de-campanha, que além de tudo rangia ao menor movimento que eu fizesse. Com tal intensidade me impressionei com tudo, que sei dizer-lhe que a noite se tornou lúgubre; como se o repouso fosse negado ao que fechava os olhos para dormir e uma porta se abrisse devagarzinho, girando sob o pivô da entrada do sono, abria-se rangendo vagarosa para dar lugar ao horror de uma viagem a um país sepulcral.

Sem grito algum, mas com um nó na garganta senti-me como alguém que vê um ladrão mas não consegue anunciar a ninguém que o vê; um sonho recorrente de quem tenta conciliar o sono e desejasse gritar sem ter nenhum êxito em espantar seu terror. Era sempre o sonho que precedia ao terror noturno e a vergonha de um lençol molhado na manhã seguinte…

Hoje sei que é por dentro dos olhos que se dorme, dizem os especialistas, mas pressupõe-se que por dentro dos olhos cerrados se possa enxergar apenas visões ternas, calmas e pacíficas; e não o horror de uma viagem a terras indesejadas. Para isso, criaram-se técnicas – como a mais antiga delas e que dizem funcionar em todos os idiomas: contar carneiros. Até hoje, não sei bem porque isso poderia funcionar, o certo é que naquela noite pensei bem próximo à vigília em doces lembranças das brincadeiras do dia com meus primos. Porém, onde cabem carneiros, cabem também pequenos demônios noturnos a espiar-nos por dentro dos olhos nossos, carunchos, cupins que roessem a madeira por dentro com estardalhaço noturno – como se da madeira do estuque e dos olhos tomassem posse.

A cama daquele que aguarda o sono há de ser como funda, como leito em vasto oceano, como quando ainda um infante me balançavam o berço. Assim e não essa terra árida, em que sobre “um leito raso” os olhos dos olhos se transfiguram em ondas com aquela exposição trevosa que assusta o menino exausto mas insone.

Seria o caso de sondar o espaço, em busca da estrela mais brilhante; da que se diz  a que queima, “estrela ardente”. A que espécie de cão esse demônio empreendera tal sociedade a me impedir o repouso?

– Não sabe o menino de dentro dos olhos presa feita responder, meu senhor. Sei que fisionomia de um barqueiro tinha. Sei ainda que o cão tinha lá sua serventia de manter ativos os “pesadelos fantásticos, trementes…

Bem, quando se está em tal situação, não há mesmo como fugir. Então, decidi que o melhor era manter os olhos bem abertos – como os olhos estrangeiros que me fitavam com certa majestade sem enganar-me que um punhal portava.

Era como se… – dir-se-ia: Morfeu estava afastado dessa contenda, à sua gruta recolhido – como se, entre a noite e o menino batalha interminável se travasse. Via umas cavernas ao longe destacadas. Pensava no que me dissera minha avó que há muito se sabe que se espalham cavernas por uma terra não muito distante da casa de meu tio, onde a terra ronca, onde Goyaz planta outra terra por debaixo desta.

E lá estavam, sob a terra real, algo que voava e ao mesmo tempo permanecia intacto: eram os olhos, não quaisquer olhos, mas olhos marcadamente de bicho: felinos e canídeos antes de tomarem a presa com seus dentes vorazes – são olhos tenazes, a resoluta definição da insônia que os olhos por dentro dos olhos do que sonham dormir não se grudam nunca.

Dantesca diria, hoje, dessa visão que tive. Mas quando menino, não disse nada. Foi o silêncio que restou de tudo que olhos não fossem – corpo e tudo mais se confundindo com o lodo em volta. E do quadro todo assim fixado e asfixiado, só os olhos alheios a me seguir sem descanso, como pajens restaram: às avessas do que proteger não podiam.

Foi assim que um percurso de uma noite fiz, na velha casa de meu tio João Queiroz, em que o teto desenhara olhos de tigre, de chacal, de urso – olhos “tenazes e constantes” – fixos olhando tendo por empréstimos os meus…

De manhã, bem cedo, os olhos vermelhos, cansados, a meditar chorando, recebi de minha avó uma xícara com leite de cabra e um afago:
– Deus te faça feliz. Os olhos, menino “quietos, tranquilos, calmos e medonhos”  – todos eles roubam os olhos da gente, por vezes. São noites brancas, embora negras se anunciem. Elas existem porque em meio ao mundo insone aumentou a conta  da imaginação pecaminosa e ensandecida e porque os elfos esconderam-se na cúspide das colunas altas demais para os meninos de sua idade alcançarem. E assim, os insones são tomados por escravo. É preciso que dê nove voltas em torno à chácara hoje e amanhã dormirá feliz…

Hoje, quando recordo dos olhos do sonho, relendo o poema do João, dou-me conta da sabedoria de vovó: são estrangeiros olhos de eternos sonhos – a quem alguém decidiu chamar não-sonhos, insônia. Sempre dou nove voltas em torno ao mundo, antes de fechar os olhos e assim, raro deixo-me guiar por olhos tão medonhos…

Fim.

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(*)Exercício: 'transposição' do poema "Olhos do sonho" de João da Cruz e Sousa para narrativa.
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