Dor (1)
Dizer da dor que não sente o quer-que-seja:
Só fingimento; é falta grave com a alma da gente;
De toda a gente que sabe o que é sofrer.
Da dor se diz pena, pain, ache o que dizer –
Da dor n’alma, sofrimento do que não ama.
Só dói em mim quando não expresso…
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COMPOSIÇÃO (1)
Vivia de escrever ilegível, hierático –
Rabiscos sem uso, brilho ou serventia.
Ansiava psicografar; fluir com o dia.
À noite a palavra disparada na mente;
Sem retoques: a mão incontida sobre
A página em branco: nenhuma máquina
Ativa; sem teclado, tábua, hieróglifo.
Nu feito santo ao desabrigo do frio.
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COMPOSIÇÃO (2)
Como vivia de escrever ilegível, um dia –
Um incêndio: desejo de automática escrita
No mais cômodo do achado maior perigo.
À noite os gatos pardos; o suor o inunda –
A mão sucumbe ao peso da composição
Não há limites, rimas, iâmbicos achaques.
Só; feito um gato sem o feromônio da poesia.
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(c) Ilustr. Vilma Machado.
COMPOSIÇÃO (3)
Todavia, em escrever ainda insistia – noite
E dia; suor e luta dispendia sem fim. Busca
de pobre sonhando com a cereja no bolo
Faminto – nem sequer cêntimo de farinha.
À noite o céu da boca do poema está vazio.
O pão quotidiano lhe faltou ontem; hoje
Entanto, miolo do pão da poesia: palpável.
Molhado ao leite do raciocínio límpido.
Aurora clara anuncia leite e pão de verdade;
E o chocolate dissolve-lhe a ideia de poesia.
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Fonte: (c) QUEIROZ, Adalberto. Cadernos de Sizenando (poemas – 2), 2016.
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