De um Dante a outro, o dom da Poesia ou: Alighieri traduzido por Dante Milano


QUANDO UM AMIGO, mesmo que ‘virtual’, nos leva a retirar um livro da estante, é um momento importante para retomarmos leituras antigas e queridas, que fizeram parte de certa fase de nossas vidas. É quando reler é reviver. Dia desses foi meu amigo Juan Asensio, crítico francês que me trouxe de volta o universo de Guimarães Rosa, com seu artigo sobre o universal escritor das Minas Gerais, que sendo relido em França me animava a retirar volumes da estante e reviver momentos bons de minha vida de leitor faminto e nem sempre tão atento às nuances como Asensio o é.

AGORA É A MEG – blog SubRosa, referência para toda blogsphere que ama e respeita os livros e a cultura em geral. Quando completa 10 anos de blog, MEG nos premia com um convite a reler Dante Milano.

RETIRO da estante meu empoeirado Dante Milano DSC01410e com ele, os cantos do bardo italiano traduzidos pelo poeta brasileiro.
Se a MEG já nos brindou com alguns bons poemas, cabe-me transcrever algumas traduções e com elas a aula de carpitaria do humilde tradutor do outro imortal Dante, o Alighieri.
Sabe-se que Milano só veio a publicar aos 50 anos e, mesmo tardio, ganhou elogios de Manuel Bandeira, que nele reconheceu “um grande poeta” e a “garra de um mestre”. As traduções, publicou-as Milano nos suplementos “Autores e Livros” e nos “Cadernos de Cultura” (do Mec). Essa 3a. edição, de que me sirvo para este post é de 1971, exemplar numerado (0678), com prefácio de Sérgio Buarque de Hollanda, intitulado “Mar Enxuto”, que por primeiro aparecera no Diário de Notícias de 6 de março de 1949, saudando a publicação do volume de Poesias de Milano que fora publicado originalmente pela José Olympio em 1948.
Como o foco aqui não é transcrever a poesia de Milano e sim suas traduções, adicione-se que suas notas de introdução aos Cantos é antológica:
“SEI o muito que custa e o pouco que vale o esforço, entre os vários feitos em nossa língua, para traduzir o célebre Canto V do Inferno, os terríveis tercetos em que perpassa o frêmito de uma paixão que se tornou imortal.
”É enorme a diferença entre o verbo forte e ás
pero de Dante e a nossa língua de índole branda. Para evitar más interpretações devo dizer que, longe de pretender menoscabar o nosso idioma, eu o considero o mais agradável de todos pela naturalidade com que as palavras saem da boca sem forçá-la a trejeitos, por sua espontânea suavidade, o gosto casto de água, a simplicidade que dispensa o adorno – não obstante possa ostentar, como em Filinto Elísio e Odorico Mendes, um vocabulário imenso e insólito, que me parece supérfluo e não ouso empregar.

“O vigor musical, ao mesmo tempo ríspido, da dicção dantesca, se dilui na singela fluência do verbo português: as palavras, traduzidas embora em outras rigorosamente equivalentes, provocam, pela mera mudança de tonalidade, reações dissemelhantes. Exemplifico: as nítidas terminações em tt – smarritto – , a marcada acentuação silábica, a rugidora pronúncia dos ‘rr’ (Dante poderia ser cognominado ‘o poeta do ‘r’’) contrastam com a pronúncia amena do nosso idioma. Assim o épico torna-se lírico. Aquelas palavras que na boca de Dante são violentas e arrebatadas, como no verso

La bocca mi baciò tutto tremante

transpostas para a nossa língua tomam um ar mais calmo, que não muda o sentido mas altera e suaviza a ação. Ao pé da letra:
A boca me beijou todo tremente
ou
Todo trêmulo a boca me beijou.
Ou ainda, como preferi traduzir, por achar mais de acordo com o ímpeto e a intensidade lírica, mas fortes que o próprio sentido das palavras,
Beijou-me a boca, trêmulo, ofegante.

”Creio que ‘o certo’ não seria traduzir ‘italianizando’ e forçando a nossa língua, mas obediente à sua índole, adaptar o verso, procurando escrevê-lo ‘do modo por que Dante o faria se escrevesse em português’, isto é, tirando o máximo partido da língua, que é sempre a primeira lei do verso.

“De nenhum modo me satisfaria o mero traslado em prosa, a maior traição que se pode fazer ao verso dantesco, que procurei ‘imitar’ o mais possível, guardando o contorno dos tercetos, sem o que não poderia dar idéia da ‘forma’ do Poeta. Fiel o mais possível à letra do texto, fiz tudo para que não sentissem o tradutor, mas o autor.” (…)

E conclui, o Milano:
“(…) Dante possuía a arte de figurar coisas difíceis de dizer, quase inexprimíveis, e só por transparência perceptíveis. Ideias que afloram como da extremidade fina do caule surge a rosa num mistério tão natural. Ele sabia desse seu dom de tornar manifesto o impalpável e comunicar o indizível:

Non avea pur natura ivi dipinto
ma di soavitá di mille odori
vi facea un incognito indistinto.

(Não só de cores tudo estava tinto
como do trescalar de mil odores
se fazia um incógnito indistinto.)

A linguagem de um poeta não pode ser trasladada a outro idioma; pode-se traduzir o que ele quis dizer, mas nunca o que ele disse. Sirva isto de escusa às deficiências desta e de qualquer tradução”, conclui Dante Milano.

Espero que as cópias abaixo sejam legíveis aos que se interessam pelo poeta-tradutor e homônimo do Alighieri e anime o leitor deste blog a conhecer mais o nosso Dante, o Milano. Recomendo também a leitura suplementar sobre Dante Milano contida no Ricardo Vieira Lima – Artigo de Ricardo Vieira Lima, UM POETA À REVELIA DE SI MESMO. Há também poemas transcritos Alguma poesia

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Fonte: MILANO, Dante. Poesias. 3a. Edição, revista e acrescida da tradução de Três Cantos do Inferno, de Dante Alighieri. Edit. Sabiá/MEC, 1971. 186 p.

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