Enquanto preparo um artigo intitulado “Presença e Permanência de Bernanos”, em que busco resposta a uma questão de Juan Asensio, vou anotando leituras ao longo da caminhada.
Em um passeio matinal, minha mulher me surpreende com outra pergunta mais simples: “como você descobriu Bernanos?” Bem, esta é uma longa história, que tem a ver com minha conversão ao catolicismo… passa pela descoberta do Corção, Alceu, Jackson, Dom Vital, os escritores católicos franceses, daí a Bernanos, um pulo, tamanho o número de referências que fui encontrando pelo caminho.
Em “Bernanos no Brasil: Testemunhos Vividos” , org. de Hubert Sarrazin, (Vozes, 1968), publicado no 20º aniversário de sua morte, encontramos mais filiados à amizade bernanosiana, ao estudo de sua obra, à apreciação de seu caráter.
O pesquisador que organizou a dita coletânea no que diz ser a pré-historiografia de Bernanos, encontrou o “entretom entre o testemunho e a homenagem“, apenas com depoimentos de pessoas que conviveram com Bernanos em sua temporada brasileira (1938-45), fugindo de compor uma “hagiografia” …
O livro é composto por 15 textos que dão a exata dimensão da filiação que a amizade do ´coxo veloz` rapidamente conquistou em seu exílio tropical. Sarrazin anota entre os amigos e admiradores de Bernanos acadêmicos, embaixadores, escritores, professores, médicos, políticos, jornalistas e pessoas humildes do campo (em Pirapora e Barbacena) que frequentavam “o sítio dos franceses” – sua casinha no Botafogo, nos arredores de Barbacena, no lugar que internacionalizou e eternizou como “Cruz das Almas” (onde ainda hoje brasileiros de escol tentam manter viva – mais 64 anos depois, a memória de Bernanos, mantendo sua “moradazinha” – feita não para desafiar os séculos por certo, como afirmou o próprio Bernanos mas como testemunho vivo do exílio do grande escritor: o Museu Bernanos em Barbacena – carente de recursos, mas objeto de viva dedicação de sua diretora, Mirian Rossi, neste Ano da França no Brasil!).
Bem, são estes os nomes que testemunham sobre a vida e obra, mas principalmente sobre a amizade Bernanos, no volume citado: Jorge de Lima, Alceu Amoroso Lima, H.J. Hargreaves, Maria Magdalena Ribeiro de Oliveira, Michel Ahouagi, Jean-Bénier, Virgílio de Mello Franco, Augusto F. Schmidt, Álvaro Lins (o crítico), Geraldo França de Lima, Fernand Jouteux, Hélio Pellegrino, padre Paulus Gordan, Edgar da Mata-Machado, J. Fernando Carneiro e Pedro Octávio Carneiro da Cunha. São amostras da filiação de Bernanos na cultura brasileira…
No texto que abre o volume, Alceu confessa que, mesmo que suas relações com Bernanos tenham “sempre se colocado num plano de tensão, de hostilidade, de discussão e de muita escuta porque Bernanos era “homem torrencial que falava sozinho por horas…” reconhece que GB era capaz de se emocionar apenas com a lembrança da morte de um amigo de Alceu (Jackson de Figueiredo), com ternura notável “entre atitudes discordantes e idéias comuns“.
É justamente para a filha de Alceu, Maria Helena, que o grande Georges se expõe como a criança que sempre foi e como o grande cruzado que nunca abandonou a cólera sagrada. Escrevendo no álbum de Maria Helena, Bernanos presenteia a então garota (e a todos nós que temos chance de ler sua carta) com “tesouros da mais autêntica poesia” (Alceu).
Confiram a tradução de Olavo de Carvalho e depois o original.
No Álbum de Maria Helena Amoroso Lima
Senhorita,
Cinco minutos atrás, eu me perguntava o que iria escrever no seu álbum, porque sou naturalmente preguiçoso. Depois, pensei de repente que essa idéia de ter um álbum era, no fundo, bem tocante, bem comovente — que era uma idéia de criança. E, como todas as idéias de criança, ela é geralmente ridicularizada. Porque o mundo não compreende nada da infância. Não digo que o mundo odeie a infância, mas ela o incomoda, e o mundo, que tolera tudo, não suporta que o incomodem.
Logo, as meninas estendem seu álbum às pessoas grandes como os pobres estendem a mão. E saem geralmente decepcionados, elas e eles, pois jamais houve verdadeiros decepcionados no universo senão os privilegiados das Beatitudes, isto é, os pobres e as crianças.
A maior parte dessas grandes pessoas às quais você estendeu a mão — cardeais, teólogos, historiadores, ensaístas, romancistas — lhe deram nem mais nem menos que uma assinatura. A assinatura é aqui o equivalente da moedinha que se dá aos pobres. Entre parênteses: se o regime totalitário triunfa, eles não terão mais sequer necessidade de escrever o nome; escreverão somente um número de matrícula, como os militares e os presidiários.
Mas você não estendeu a mão somente às pessoas grandes, você a estendeu também aos poetas. E vejo que os poetas — ó milagre! — lhe deram sem medir despesas, porque os poetas são por natureza liberais e magnifícos. Doravante não se esqueça de que este mundo horroroso não se sustém ainda senão pela doce cumplicidade — sempre combatida, sempre renascente — dos poetas e das crianças.
Seja fiel aos poetas, permaneça fiel à infância! Não se torne jamais uma pessoa grande. Há um complô das pessoas grandes contra a infância, e basta ler o Evangelho para se dar conta disso. O bom Deus disse aos cardeais, teólogos, ensaístas, historiadores, romancistas, enfim a todos: “Tornem-se semelhantes às crianças”. E os cardeais, teólogos, historiadores, ensaístas, romancistas, repetem de século em século à infância traída: “Tornem-se semelhantes a nós!”.
Quando você reler estas linhas, daqui a muitos anos, faça um pensamento e uma prece pelo velho escritor que acredita cada vez mais na impotência dos Poderosos, na ignorância dos Doutores, na papalvice dos Maquiavéis, na incurável frivolidade das pessoas sérias. Tudo o que há de belo no mundo foi feito, sem que elas soubessem, pelo misterioso acordo da humilde e ardente paciência do homem com a doce Piedade de Deus.
Coragem e boa sorte! Precisamos, todos, superar a vida. Mas a única maneira de superar a vida é amá-la. E a única maneira de amá-la é esbanjá-la sem medida. Todos os pecados capitais juntos danam menos gente do que a Avareza e o Tédio.
Outubro de 1940.
(traduzido por O.de Carvalho, de “Essais et Écris de Combat, vol II. Paris: Gallimard, 1995. pp 765-766″).
Agora, o texto original (tirado da pág. 29 de “Bernanos no Brasil”):
Mademoiselle,
Il y a cinq minutes, je me demandais ce que j´allais écrire sur votre album parce que je suis naturellement paresseux. Et puis j´ai pensé tout à coup que cette idée d´avoir un album était, au fond, bien touchante, bien émouvante – que c´était une idée d´enfant. Et comme toutes les idées d´enfant, elle est généralement bafouée, parce que le monde ne compren rien à l´enfance. Je ne dis pas que le monde hait l´enfance, mais elle lémbête, et le monde, qui tolère tout, ne suporte pas qu´on l´embête.
Bref, les jeunes filles tendent leur album aux ´grandes personnes`comme les pauvres tendent la main. Et ils sont généralement déçus l´un et l´autre, car il n´y a jamais eu de réellement déçus dans l´univers que les privilégiés des béatitudes, c´est-à-dire les pauvres et les enfants.
La plupart de ces grandes personnes auxquelles vous avez tendu la main – cardinaux, théologiens, historiens, essayistes, romanciers – vous ont donné tou juste une signature. La signature est ici l´équivalent du petit sou qu´on donne aux pauvres. entre parenthèses, si le régime totalitaire triomphe, ils n´auront même plus besoin d´écrire leur nom, ils inscriront seulement leur numéro matricule, comme les militaires et les forçats.
Mais vous n´avez pas tendu la main qu´aux grandes personnes, vous l´avez aussi tendue aux poètes. Et je crois que les poètes – ô miracle! – vous ont donné sans compter, parce que les poètes sont par nature libéraux et magnifiques. N´oubliez plus désormais que ce monde hideux ne se soutient encore que par la douce complicité – toujours combattue, toujours renaissante – des poètes et des enfants.
Soyez fidèle aux poètes, restez fidèle à l´enfance! Ne devenez jamais une grande personne! Il y a un complot des grandes personnes contre l´enfance, et il suffit de lire l´Evangile pour s´en rendre compte. Le Bon Dieu a dit aux cardinaux, théologiens, essayestes, historiens, romanciers, à tous enfin: “Devenez semblables aux enfants”. Et les cardinaux, théologiens, historiens, essayistes, romanciers répètent de siècle en siècle à l´enfance trahie: “Devenez semblable à nous”.
Lorsque vous relirez ces lignes, dans bien des années, donnez un souvenir et une prière au viel écrivain qui croit de plus en plus à l´impuissance des Puissants, à l´ignorance des Docteurs, à la naisairie des Machiavels, à l´incurable frivolité des gens sérieux. Tout ce qu´il y a de beau dans l´histoire du monde s´est fait à l´insu de nous par le mystérieux accord de l´humble et ardente patience de l´homme avec la douce Pitié de Dieu.
Bon courage et bonne chance! Il nous faut tous rumonter la vie. Mais la seule manière de surmonter la vie, c´est de l´aimer. Et la seule manière de l´aimer, c´est de la prodiguer sans mesure. Tous les péchés capitaux ensemble damnent mois d´hommes que l´Avarice et l´Ennui.
G. Bernanos.
Adalberto, adorei o que acabei de ler. Posso mandar para uma amiga, uma excelente aluna de meu último ano em Maceió (1950), hoje professora universitária já aposentada, com livros publicados e excelente reputação como conhecedora da língua portuguesa?
Se você não aprovar, não vou ficar sem graça. Sei que há razão para cada opção que se faça e respeitarei a sua.
O texto de Bernanos é delicioso e foi adoravelmente utilizado por você que considero um dos mais evoluídos deste nosso cyberspace.
Fique à vontade para me responder.
Recomendações à família. Beijinho especial no Lucas
Abraço, Magaly
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Ma chère MAGALY,
Obrigado pelo simpático comentário.
Fique à vontade para distribuir o texto do Bernanos.
Obrigado também por lembrar do Lucas, meu adorável neto.
Mes Amitiés,
Beto.
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Agradeço sempre a atenção e o carinho. O Museu Georges Bernanos realmente é carente de recursos. Precisamos divulgar sempre. Uma luta constante. Pessoas como você Beto é que nos fortalece e nos empurra a continuar a caminhada.
Um grande abraço,
Mirian Rossi/Diretora do Museu Georges Bernanos
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Querido Beto,
Sou admirador número um de Alceu de Amoroso Lima, o Tristão de Ataide e já mencionei isto num artigo no Diario da Manhã. Quando trabalhei na “Folha de S. Paulo” tive o privilégio de digitalizar seus artigos em “Tendências e Debates”. Não sabia da relação dele com o franes Georges Bernanos.e, como a sua admiradora e amiga Magaly, também gostei da singeleza do texto. Parabéns à diretora Mirian Rossi pela perseverança e a você por ser o que é. Abraços do seu admirador Henrique Gonçalves Dias.
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Puxa vida, Henrique. Um leitor assim me anima a continuar escrevendo.
Obrigado pela visita, pela gentileza e carinho do comentário.
Abraço do Beto.
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