Kierkegaard: Exórdio à “Doença até à Morte”


Meus caro(a)s amigo(a)s:

Tendo passado das “Migalhas Filosóficas”
ao livro em referência, Kierkegaard

ganhei em leitura e vivi mais uma experiência com o Autor que me habilita a elevá-lo ao posto de um dos meus pensadores favoritos. Nesta quadra da vida em que há mais tempo para pensar e onde a reflexão torna-se sua companheira durante longas horas vividas a só, aproximei-me de Sören A. Kierkegaard, com a humildade do “leitor estarrecido” (que foi a definição dada por minha amiga Claire S. em um comentário neste blog).

Sigo o conselho do professor Olavo de Carvalho, que nos convida a “dialogar e se impregnar com a cultura de outras épocas”, como saída para a convivência insossa com uma “sociedade pervertida”. De fato, “é preciso, [é salutar, é revificador] transcender nossa época, nossa sociedade, saindo deste cotidiano restrito” para dialogar com pensadores como o grande Kierkegaard. Esse diálogo é capaz de fazer transcender o cotidiano muitas vezes mesquinho e reduzido.

Exórdio à “Doença até à Morte”*.
(Transcrição).

Esta enfermidade não é para morte (João 11, 4) e contudo Lázaro morreu; mas como os discípulos não compreendessem a continuação: Lázaro, o nosso amigo, dorme, mas eu vou acordá-lo do seu sono, Cristo disse-lhes sem ambigüidade: Lázaro está morto (11, 14). Lázaro, portanto, está morto, e contudo a sua doença não era mortal, mas o fato é que está morto, sem que tenha estado mortalmente doente.

Cristo pensava nesse momento, sem dúvida, no milagre que mostrasse aos contemporâneos, ou seja, àqueles que podem crer, a glória de Deus, no milagre que acordou Lázaro de entre os mortos; de modo que não só essa doença não era mortal, mas ele o predisse, para maior glória de Deus, a fim de que o filho de Deus por tal fosse glorificado.

Mas, ainda que Cristo não tivesse acordado Lázaro, nem por isso seria menos verdade que essa doença, a própria morte, não é mortal!

Desde o instante em que Cristo se aproxima do túmulo e exclama: Lázaro, levanta-te e caminha! (11, 43) já estamos certos de que essa doença não é mortal. Mas até sem essas palavras, não mostra ele, ele que é a Ressurreição e Vida (11, 25), só pelo aproximar-se do túmulo, que essa doença não é mortal? e simples fato da existência de Cristo, não é isso evidente? Que proveito haveria, para Lázaro, em ter ressuscitado para ter de acabar por morrer! Que proveito, sem a existência daquele que é a Ressurreição e a Vida para qualquer homem que n ‘Ele creia! Não, não é por causa da ressurreição de Lázaro que essa doença não é mortal, mas por Ele existir, por Ele. Visto que na linguagem humana a morte é o fim de tudo, e, como é costume dizer-se, enquanto há vida há esperança.

Mas, para o cristão, a morte de modo algum é o fim de tudo, e nem sequer um simples episódio perdido na realidade única que é a vida eterna; e ela implica para nós infinitamente mais esperança do que a vida comporta, mesmo transbordante de saúde e de força.

Assim, para o cristão, nem sequer a morte é a doença mortal, e muito menos todos os sofrimentos temporais: desgostos, doenças, miséria, aflição, adversidades, torturas do corpo ou da alma, mágoas e luto. E de tudo isso que coube em sorte aos homens, por muito pesado, por muito duro que lhes seja, pelo menos àqueles que sofrem, a tal ponto que os faça dizer que a morte não é pior, de tudo isso, que se assemelha à doença, mesmo quando não o seja, nada é aos olhos do cristão doença mortal.
Tal é a maneira magnânima como o cristianismo ensina ao cristão a pensar sobre todas as coisas deste mundo a morte incluída.

É quase como se lhe fosse necessário orgulhar-se de estar altivamente para além daquilo que correntemente é considerado infelicidade, daquilo que vulgarmente se diz ser o pior dos males… Mas em compensação o cristianismo descobriu uma miséria cuja existência o homem, como homem, ignora; e essa miséria é a doença mortal.

O homem natural pode enumerar à vontade tudo o que é horrível — e tudo esgotar, o cristão ri-se da soma. A diferença que há entre o homem natural e o cristão é semelhante à da criança e do adulto. O que faz tremer a criança nada é para o adulto. A criança ignora o que seja o horrível, o homem sabe e treme. O defeito da infância está, em primeiro lugar, em não conhecer o horrível, e em seguida, devido à sua ignorância, em tremer pelo que não é para fazer tremer. Assim o homem natural; ele ignora onde de fato jaz o horror, o que todavia não o livra de tremer. Mas é do que não é horrível que ele treme. Assim o pagão na sua relação com a divindade; não só ele ignora o verdadeiro Deus, mas adora, para mais, um ídolo como se fosse um deus.

O cristão é o único que conhece a doença mortal. Dá-lhe o cristianismo uma coragem ignorada pelo homem natural — coragem recebida com o receio dum maior grau de horrível. Certo é que a coragem a todos é dada; e que o receio dum maior perigo nos dá forças para afrontar um menor; e que o infinito temor dum único perigo nos torna como inexistentes todos os outros. Mas a lição horrível do cristão está em ter aprendido a conhecer a doença mortal.

+++++
*Fonte: KIERKEGAARD, Sören Aabye. “O Desespero Humano (Doença até à Morte)”, em “Os Pensadores”, vol. s/nr. da Ed. Abril, trad. Adolfo Casais Monteiro, 2a. ed., S. Paulo, Abril Cultural, pp. 191/2.
Para download do livro completo, clique aqui.

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11 respostas em “Kierkegaard: Exórdio à “Doença até à Morte”

  1. Beto, bom dia!
    Sem dúvida para minha “leiguisse”, trata-se de um texto um tanto quanto complexo. Porém acredito fielmente que, quando temos a Deus as coisas se tornam mais simples do que parece. Até mesmo a morte!
    Me apego muito a Deus em todos os momentos, principalmente os que para mim, parecem complexos. Confesso que não estou tão perto de Deus, como cristã, quanto deveria…Me chicoteio por isto!

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  2. Interessante.
    É necessário conhecer o maior dos males para ter coragem para enfrentar um menor.
    Mas de fato a fé e a proximidade a Deus e verdadeiro temor a Deus é o que dá sentido a todas as lamúrias do mundo terreno.
    Realmente para aceitar e conviver é preciso aceitar e acreditar que “e (a morte) ela implica para nós infinitamente mais esperança do que a vida comporta”.
    Vida eterna ou vida espiritual.

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  3. Sr. Beto,

    Muito feliz por conhecer seu site. It’s amazing!
    Gostaria de dedicar-me mais aos pensadores pois a base da filosofia é o pensar, é o ócio. Nós não usamos toda a nossa capacidade mental, ainda caímos por vezes ao adoecermos em males criados por nós mesmos como depressões, tristezas, ansiedades.
    Confiar que Deus é único, que Jesus é o Ressuscitado, nos levaria a sermos mais fortalecidos em não nos deixar abater por qualquer problema rotineiro. A não cair por qualquer mal. A verdade é que nossa fé é pouca.
    Parabéns pelo artigo. Eu sou muito apaixonada pelo livro de João, o mais amado por Jesus, é o mais agradável de ler. Ele exala amor em suas palavras.

    Abraços!

    Cynthia Leite.

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  4. O Exórdio dá pistas do conceito de desespero abordado por Kierkegaard. A doença de Lázaro é comum a todos os homens e se chama desespero. Doença da qual morremos diariamente, sem, no entanto, morrermos de fato (morte consumada do corpo). O desespero é a queda no nada, no vazio, mas é também uma abertura para o tornar-se. A narrativa da morte de Lázaro é transferida para o campo da subjetividade: assim como ele, também morremos e ressuscitamos, só que “internamente”, enquanto seres que constroem sua existência a cada dia. Parabéns pela iniciativa. O desespero é uma doença que nos acompanha até a morte, pois enquanto vivos e consciente, esperamos. Doença que guarda em si mesma a cura (a chance se tornar o que se quer).

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