As horas de Katharina (i) – Bruno Tolentino


“BRUNO TOLENTINO é seguramente um dos maiores poetas da língua portuguesa, na era pós-João Cabral. Estranha, portanto, que tão poucos ainda o digam, estudem, amem. Talvez porque o tenham lido menos do que repudiado as suas declarações polêmicas; ou porque se sentiram intimidados pelos muitos protocolos teóricos, estéticos, ideológicos, ou teológicos até, que propôs ou pretendeu impor para a leitura de seus livros; talvez ainda porque lhes pareceu anacrônico uma poesia com métrica e rima; ou mesmo, quem sabe, porque lhes tenha soado pobre uma poesia que, ao rimar, ilusão não exclui coração nem paixão, como um Roberto Carlos dos ricos. No entanto, são todos motivos frívolos.”

– É assim que Alcir Pécora abre a apresentação do livro “As Horas de Katharina”, sob o título de “O Livro de Horas de B.Tolentino”. Alcir conta ao leitor que esta edição da Record traz a íntegra da obra mais conhecida de BT “com precisas correções e anotações, que esclarecem alguns pontos importantes de sua confecção”, além de vir acompanhada de uma peça teatral inédita, “A Andorinha, ou: A Cilada de Deus”, obra finalizada às vésperas da morte do poeta, em junho de 2007, aos 66 anos de idade.
As horas BrunoTolentino “As Horas… são compostas por 166 poemas que têm, como assunto único, os sentimentos experimentados pela ‘persona’ poética, e também protagonista da peça, a condessa Elisabeth Katharina von Herzogenbuch, desde sua entrada no Convento das Carmelitas Descalças de Innsbruck, no Tirol, em 1880, aos 19 anos de idade, até a sua morte no mesmo convento, em 1927. Herzogenbuch, ao que parece, é apenas um topônimo de lugar nobre (sendo o buch relativo a faia, atualmente ‘buche’ em alemão), mas, para quem pensa em decupagens possíveis para o poema, pode ser interessante imaginar que o nome abriga também a palavra ‘buch’ (o termo alemão para ‘livro’). Há outros exercícios anagramáticos a observar nesse sobrenome ilustre, mas poupo deles o leitor” –
alerta Alcir. Porque “o que importa é perceber que, no livro de Tolentino, o espaço de confinamento físico da cela conventual é também o tempo da aventura moral, mística, da personagem, o que abre imediatamente para o conjunto do livro um plano de descrição histórica e, outro, de interpretação espiritual, sem que qualquer deles possa ser dispensado de seu papel central na articulação dos sentidos básicos dos textos.”
Livro dividido em três partes (1a. – Os longos vazios com 87 poemas; 2a. – O castelo interior, com 22 poemas; e 3a.-No carmim da tarde – “um trocadilho, brincalhão e literal simultaneamente, como muitas vezes ocorre na poesia de Bruno” (AP) – contendo 57 poemas).

Pois bem, transcrevo dois poemas da 2a.Parte

… que dizem respeito a leituras especialíssimas que fiz nas últimas décadas: “Moradas” (de Castelo Interior e Moradas) de Sta. Teresa d’Ávila e “Noite Escura”, de São João da Cruz. Alcir Pécora ressalta que Bruno consegue nesses poemas “uma interpretação tão precisa como pessoal das obras decisivas dos dois autores e diretores espirituais decisivos para a reforma da Ordem do Carmelo no séc. XVI”.Sao Joao e Santa Teresa


A familiaridade com a obra mística e poética dos dois autores católicos demonstrada por Tolentino, continua Pécora, “permite a BT apresentar concentradamente, nesse breve meio-termo (do livro) tanto a exigência da vontade livre, do livre-arbítrio do amante pecador e humano em busca do amado perfeitíssimo, quanto a natureza ineludivelmente cega dessa busca, na qual a razão não tem uso, a não ser para distrair da imensidade intensa que se anuncia, ainda que não se veja, e ainda que nenhum mérito próprio se sustente como caução da esperança”.
Transcrevo, portanto, dois poemas desse trecho, sempre reforçando essa “caução da esperança” que é, de resto, o que se deposita em nossa alma de leitor a partir da visão místico-poética de Katharina/Bruno sob os olhares de Santa Teresa e São João da Cruz:

106

bernini_theresa
Teresa encarcerada em seu castelo,
Na sétima mansão, lívida e nua
sob o suor de sangue que a alma sua.
Teresa enfeitiçada pel’O belo

Sedutor do infinito, como a lua
pelo sol. No silêncio do Carmelo
Teresa como o grito do martelo
nos cravos da Paixão. Lá fora a rua

a ladeira de pedra, leva à praça
e a praça à poeira de Castela
e a poeira, no vento, à dor da raça.

A raça, como a concha, leva à pérola,
e eis a pérola raptada (pela graça)
àquela raça tão igual a ela…

+++

107
Teresa e a limpidez da fortaleza.
Teresa e nós, parceiros na saudade
(provisória) de Deus. Que a coisa presa
ao provisório que a eternidade,

saudosa de esvair-se, claridade
que tende a evaporar-se na leveza.
Somos todos parentes de Teresa,
todos cidadãos dessa cidade

ideal do real, porque a beleza
neste mundo é arremedo da verdade.
Teresa, a pioneira da pureza

que é a tradução de tudo em nós, é alcaide
da cidade-fortim que por bondade
de Deus habitaremos com certeza.

++++
Fonte: TOLENTINO, Bruno. “As horas de Katharina : com a peça inédita A andorinha ou: A cilada de Deus”, comentários e notas de Juliana P. Perez & Jessé de Almeida Primo; coord. Guilherme Malzoni Rabello & Martim Vasques da Cunha. Rio de Janeiro, Ed. Record, 2010. Pág.191/2 poemas; apresentação de Alcir Pécora, p.9 e ss.


 

 

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5 respostas em “As horas de Katharina (i) – Bruno Tolentino

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