O vulto na Ladeira*
(Poema de Bruno Tolentino)
Encontro Jorge de Lima
na virada da ladeira
do Mosteiro de São Bento;
como os braços do Cruzeiro,
cruzamo-nos já lá em cima,
um descendo, o outro subindo;
vejo-o estender-me a mão limpa
com toda a solenidade
e sinto cair a tarde
como tudo anda caindo…
Lembro ainda o que lhe disse.
´Poeta, mestre meu difícil,
cada vez mais me lamento
destes tempos; de haver sido
o século tão propício
aos deuses de cassetete
e aos fúteis quebra-cabeças
dos néscios, dos que não cessam
de redividir o nada
e conclamar à cruzada
a legião dos ressentidos
Aqui, à sombra da Igreja,
desde o dia em que partiste
multiplicaram-se os signos
do fim destes tempos tristes,
tristes segundo os desígnios
d´O que assim quis, e assim seja
E vinha caindo a tarde
no adro daquela igreja
ferta pedra e pensamento
e, sem que eu compreendesse,
assim como veio o bardo
que caminhava comigo
desapareceu no vento
daquele lugar antigo
Como Miraceli às vezes
Desaparece e aparece
sacudindo a eternidade
sobre este mundo postiço
E ainda padeço a saudade
do sonho de tudo isso.
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*Fonte: “Os Deuses de Hoje”, ed. Record, 1995, pág.85/86.
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