Dora Ferreira da Silva
Poesia que convida à elevação mística

Em 2006, no ano do centenário de Dora Ferreira da Silva, fomos brindados por uma edição que considerei como o lançamento do ano no mercado editorial brasileiro – “Uma Via de Ver as Coisas”[1]. Era a segunda edição de um livro que foi pela primeira vez editado em 1973, como o segundo livro individual de Dora. Como assinala o jovem editor goiano Miguel Jubé: “É isso que trazemos de volta: o lugar de Dora Ferreira da Silva na poesia brasileira, pois se os que já a conheciam, aguardavam para revê-la tomar seu lugar, quem não a conhece pode se ater com o novo de uma conjunção de épocas”.

E em sua texto, Jubé assinala que a poeta, também tradutora e das boas, traduziu Angelus Silesius e fazia desse ofício uma constante: “A capacidade de dizer algo surpreendente do mesmo modo cotidianamente natural, comezinho, como nos chama para o almoço ou nos dá bom dia (…) Não pertences ao todo se fixo é o teu ser.”

Dora prefere a “subida em profundidade”, para usar a expressão de Enivalda [Eni] Nunes Freitas e Souza, na introdução deste livro: “Em ti começa a eternidade de passos que iniciam/teu rumo”.

Assegura-nos a professora Eni Freitas que “a poesia de Dora é um poço que conduz à subida, à elevação. A caminhada se faz por escamas límpidas de linguagem que de tão lúcidas ferem a vista, exigindo o excesso de clareza de repetidas leituras”.

Similar à inesquecível lição do professor José Fernandes sobre a poesia da goiana Sônia Maria Santos, aqui também é preciso que o leitor seja exigente consigo mesmo, em igual ou maior medida que a poeta o foi com a linguagem, pois afinal, “há algo de maravilhoso aprisionado no mundo que [só] o empenho da palavra poética pode libertar”, destaca Enivalda.

Dora Ferreira da Silva (1918-2006) é de uma geração que se reunia em sodalícios intelectuais em torno das revistas “Diálogo”, “Cavalo Azul” e de sua casa na rua José Clemente, em São Paulo, onde eram constantes as presenças de Vilém Flusser e sua esposa Edith, de pintores como Sansom Flexor, Mira Schendel, o filósofo (e marido de Dora) Vicente Ferreira da Silva, além de alunos seguidores do filósofo tcheco, como Milton Vargas. A poeta é amostra soberba de um país que já não existe, onde a convivência dos contrários era possível e fecunda.

Em livro recente sobre a vida do filósofo tcheco Vilém Flusser[2], Gustavo Bernardo diz que “José Paulo Paes reconhece Dora na linhagem daqueles poetas cuja palavra ronda as fronteiras do sagrado, vendo na realidade o espaço aberto da hierofania”. Poetar significaria, para Dora, “tecer símbolos salvíficos que nos ancoram novamente na verdade realidade. Por isso, poetar significa para ela o mesmo que orar ou rezar” (Vilém Flusser).

O exemplo candente disso é o poema Adoração[3], que o amigo agnóstico da poetisa (Flusser) traduziu para o alemão, sem verter o título:

Difícil chamar-te pelo nome, agora

que és tudo em meu chamado.

Ecoas. Água da sede,

bebo-te em silêncio. E despojo-te da imagem

no transparente ser e estar

sem perceber

que sou e estou

que és e estás

entregues ao não saber

do quando e onde

sempre e agora

e te sou

e me és

estando no infinito estar

sendo no infinito ser

que nos envolve e abarca

silenciosa viagem

adeus.

Flusser, segundo Bernardo: “compara Dora a [Guimarães] Rosa: a prosa de Rosa se situaria em contexto religioso enquanto a poesia de Dora seria já expressão religiosa que requer análise paciente ao nível de cada poema, cada sentença, cada palavra”. Vejam este poema:

ÓRFICA

Não me destruas, Poema,

enquanto ergo

a estrutura do teu corpo

e as lápides do mundo morto.

Não me lapidem, pedras,

se entro na tumba do passado

ou na palavra-larva.

Não caias sobre mim, que te ergo

ferindo cordas duras,

pedindo o não-pedido

do que se foi. E tento conformar-te

à forma do buscado.

Não me tentes, Palavra,

além do serás

num horizonte de Vésperas.


“Órfica” é um dos meus poemas prediletos neste livro. É possível compreendê-lo melhor pensando na entrevista de Dora concedida em 1999 e comentada por Gustavo Bernardo no livro citado acima. “Todo poeta tem um crítico lateral”.

Ele [o poeta] não pode ser muito forte, porque senão é como a luz que entra na câmera fotográfica: vela a imagem. Um poeta que seja muito crítico fará a poesia sofrer, mas também não pode ser totalmente acrítico, não pode acolher tudo o que lhe vem. Ao mesmo tempo, no entanto, chega perto de uma concepção religiosa, epifânica, quase panteísta.
Quando eu estou andando no caminho de Itatiaia e, de repente, vem um pássaro, é um susto. E eu não sei mais se era um pássaro ou um deus. Não é um exagero. Não é literatura. Deu-me um temor sagrado”.

Vejam o resultado poético:

ESPERANÇA 

Pousa num golpe o pássaro do verde

súbito nascido de seu voo.

Ecoa o telegrama em nosso peito.

Conferimos as poucas letras

de tão longe vindas

de tão fundo oriundas

vindas e chegadas

a um porto de partida.

Apagadas as letras

soletramos a sós

o sol

da comunhão com tudo”.

Dora foi premiada três vezes com o Prêmio Jabuti, uma com o Machado de Assis (da ABL); foi tradutora de Friedrich Hölderlin, Angelus Silesius, Rainer Maria Rilke, Carl G. Jung e São João da Cruz. A poesia de Dora foi traduzida para o inglês, o alemão, o espanhol, dentre outros idiomas. Deixou 15 livros de poemas, incluindo uma antologia (“Poesia Reunida”, 1999), uma peça de teatro e alguns contos. Ela merece ser lida e relida por nos ter deixada uma poesia do mais alto nível em língua portuguesa. Para ela, há um “elemento sacerdotal na Poesia”, “concordando com Hölderlin quando este diz que a palavra é o mais inocente dos bens; no entanto, o mais perigoso”. Dora zelou desse bem como poucos homens e mulheres o fizeram na poesia brasileira.

TEMPLO IN ANTES

Antes, vigiando a cela do deus ausente.

Fora, o sol trançando a colunata,

infundindo vida à pedra fria.

Risos nos tríglifos, nos frisos,

na escalinata de passos e bulício.

Ausente a morte na Acrópole,

ausente a morte no sol de seu crepúsculo.

Pinheiros perfumados na colina das Musas

também vigiam. As eras encravam-se

na pedra alvíssima que o vento acaricia.

Colunas de ouro claro: viajantes da aurora

no mar revolto dos templos que irradiam.”


[1] Cf. SILVA, Dora Ferreira da (1918-2006). “Uma Via de Ver as Coisas”. Goiânia: Editora Martelo, 2018.

[2] BERNARDO, Gustavo. “A dúvida de Flusser: filosofia e literatura”. S. Paulo, Globo, 2002.

[3]  Idem, pág. 245.

Avatar de Adalberto Queiroz

Published by

Deixe uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.