DILETOS AMIGOS – meditações da Quaresma (1)
Em 2016, tracei como meta ler e meditar sobre a vida e o exemplo de São Bernardo de Claraval (1090-1153). Em princípio, mesmo não sendo historiador, nem possuindo formação acadêmica na matéria, pretendia escrever um pequeno volume em vernáculo sobre o monge que foi “testemunha de seu tempo perante Deus” (Henri Daniel-Rops) ou “O monge que se impôs a seu tempo” (de autoria do monge Luis Alberto Ruas Santos O.Cist.).
Bastou-me debruçar sobre o alentado volume de Ailbe J. Luddy (Bernardo de Claraval*) para constatar quão grandiosa seria a tarefa sonhada. Não que me desanime, apenas confesso a você, leitor, que me sinto pequeno diante da figura humaníssima deste personagem da história do Cristianismo.
São Bernardo de Claraval (St. Bernard de Clairvaux, 1090-1153) – o que dizer de um homem que atendeu ao chamado à santidade, sem descurar dos assuntos terrenos e, às vezes, esteve neles tão imerso que a polêmica dificulta compreender sua santidade ?
O mundo diante de Bernardo monta o teatrinho antigo do “ame-o ou deixe-o” – de quem admite que falar é fácil e difícil; e, diante da importância e grandeza da personagem, até os ateus (ou agnósticos) sentem-se no direito de vilipendiar a vida do Santo, sobre ele entabulando diálogos inexistentes e fantasiando sobre a sua reta doutrina.
Entanto, Bernardo – sua obra e sua vida – são de uma atualidade impressionante para o século em que vivemos. Sim, este século em que parecemos sucumbir como Cristãos; onde os embates com os maometanos e a decadência dos costumes afrontam a fé Católica, colocando o Cristianismo naquela posição de retaguarda quase afrontosamente covarde diante das coisas mundanas.

Henri Daniel-Rops, Ed. Quadrante, 2013, 126p.
Bernardo de Claraval – Testemunha do seu tempo perante Deus, livro de Henri Daniel-Rops é assim de importância relevante para os que desejam conhecer São Bernardo e cotejar sua obra com o século em que o monge de sua cela e dos mosteiros que fez multiplicar, enviava sua força de influência e sua pena de correção aos reis e aos papas, bem como aos hereges e aos infiéis; tudo com força de espírito e estilo próprio que o fez ser reconhecido como Doutor da Igreja.
De fato, toma-se conhecimento neste precioso livrinho de Daniel-Rops que “há nove séculos, em terras ocidentais, o homem mais célebre era um monge cisterciense [da cidade francesa de Cisteaux] chamado Bernardo” – porque exprime sua época e por que o século XII pode ser chamado de “o século de São Bernardo” é o que ficamos sabendo nas 126 páginas deste opúsculo.
Os seus méritos são, curiosamente, os que mais causam nos inimigos da Fé as maiores polêmicas: Daniel-Rops lista os problemas propostos pelo seu século e que não ficaram sem resposta por parte de São Bernardo:
1. A Cruzada que deveria ser retomada; 2. o Cisma na Igreja que devia cessar; 3. as relações entre o Império e o Papa; iv. o combate entre racionalismo e a fé; 4. a arte religiosa não se tornar entrave (ou diversionismo) para um encontro com Deus nos templos sagrados.
Bernardo foi este homem raro que “conseguiu a síntese perfeita entre contemplação e ação“. Tornando-se um “homem de ação”, Bernardo repetiu Santo Anselmo e Jean de Fécamp; foi o exemplo para Santa Teresa d’Ávila e S. João da Cruz; Guilherme de Saint Térry [biógrafo de Bernardo]; Hugo de São Vítor e, mais recentemente, para leigos como Paul Claudel e Charles Péguy.
Mas nenhum desses, conclui Daniel-Rops “realizou como Bernardo de Claraval esse miraculoso equilíbrio entre a vida interior e a ação, entre o que é do mundo e o que ultrapassa os seus horizontes” – enfim, Bernardo transitou com equilíbrio entre o Natural e o Sobrenatural (para usar a expressão feliz de C.S. Lewis).
Isso só prova que se “os grandes místicos são geralmente homens e mulheres de ação e de um bom-senso superior” (na expressão de H. Bergson), a lida com as coisas do dia-a-dia do convento e da hierarquia da Igreja, a visão do lado meramente material e “terra-a-terra” nos mostra que “mesmo na ordem prática, a santidade pode ser eficaz e que a intervenção do elemento Sobrenatural é também fator decisivo no desenrolar da história” humana.
Por que ler e rezar a S. Bernardo ? O místico dos sermões sobre o “Cântico dos Cânticos” nos basta para fazer reconhecer o poder que a oração e a meditação profunda de temas bíblicos podem fazer quanto ao desejo de estar com Deus.
Já o líder Bernardo foi responsável por espalhar (com seu exemplo e tenacidade) mosteiros ao redor do mundo; e continua influenciando a vida monástica, serve-nos como modelo de Santo que se torna um exemplo, tanto ao purpurado quanto ao mais humilde dos leigos que atuam no seio da Igreja (ou no seu lar), em meio a família ou, na comunidade, como um simples catequista.
O essencial da mensagem de Bernardo “é um apelo permanente aos melhores” – a ação para que todo Cristão seja melhor, o essencial em Bernardo é que se deve sempre visar a criar um conjunto de “aristocratas” no sentido mais profundo do termo, isto é, aqueles que não se contentam senão com o Bem e tudo a que se dedicarem que seja melhor que possa ser feito. Se era exigente com os outros, Bernardo o era duplamente consigo mesmo. Incansável, mesmo na doença e na dor, não deixava de espargir o amor através de suas cartas e sua visitas pessoais – são mais de 500 cartas; 250 sermões; inúmeros comentários aos textos das Escrituras e 86 especiais sermões “De Cantica” – que é considerado sua obra-prima, sobre o “Cântico dos Cânticos“, além dos “Tratados sobre a Doutrina“, que foram decisivos para que, em 1830, Bernardo fosse considerado Doutor da Igreja.
Vita Prima, com cinco volumes, entre escritos seus e de seus contemporâneos mostram ao leitor especialista que em Bernardo está “uma personalidade simultaneamente humana e grandiosa, que toca a alma e apaixona a inteligência, um dos modelos mais perfeitos de cristão” – incluindo na admissão de suas culpas e falhas.
De família nobre – sua mãe Aleth era filha do poderosos senhor de Montbard – e de tradição guerreira – seu pai Tescelin era um castelão de Fontaine! -, Bernardo teria diante de si possibilidades múltiplas de carreeira mundana; e bem assim o confirmaram os estudos iniciais em Châtillon-sur-Seine, onde a família tinha uma casa e onde Bernardo foi educado por “pedagogos de elite“. Ele adquiriu os conhecimentos do Trívium – Gramática, Retórica e Dialética – tendo lido, copiado e decorado Horácio, Virgílio, Ovídio (!), Cícero, Lucano, Estácio e Boécio – sem esquecer os Pais da Igreja, sobretudo Agostinho. Recebeu um “verniz do Quadrivium” – geometria, aritmética, astronomia e música e estudos superiores – e apenas noções elementares, exceto de música. Foi, segundo os biógrafos, um estudante atento e um discípulo tímido e respeito; já desde então amando as Sagradas Escrituras com ardor.
Sem meios-termos, o jovem adulto Bernardo não hesita entre a vida monástica e os altos cargos administrativos ou semirreligiosos que a família poderia ajudar a obter. Bernardo em 1111, portanto aos 21 anos, decide dirigir-se para Cister:
“O Senhor falou ao coração de um jovem chamado Bernardo, o qual, embora muito novo, de origem nobre, sensível e instruído, desprezou todos os prazeres e delícias do século, como também as dignidades eclesiásticas, e, inflamado no fogo do amor divino, resolveu com todo o fervor da sua alma abraçar a rigorosa vida dos cistercienses”.
(*) Do Exordium magnum Ordinis Cisterciensis.
Seu poder de convencimento era grandioso. Ao decidir pela vida devotada ao mosteiro, Bernardo também convenceu quase toda a família a segui-lo. Um exemplo do seu poder de persuasão que o seguirá por toda a vida. Embora o pai tivesse se oposto ao desejo do filho, o tio Gaudry não apenas o apoiou como acabou por segui-lo na sua decisão. Um a um, diz-nos Daniel-Rops, os irmãos sem exceção o seguiram. Homens de guerra e um deles casado, mas Bernardo soube dizer-lhes a mensagem de Deus que os toca profundamente pela decisão da vida monástica.
Há o caso de Gerardo, que ferido num combate, ao olhar o sangue escorrer, exclama, como se tivesse num batismo de sangue: “De hoje em diante, sou monge de Cister!” E o caso de Guy, jovem casado, abandona esposa e duas filhas pequenas para se juntar à família no mosteiro. Resta Nivardo, o caçula dos filhos de Tescelin e Aleth. Com quinze anos de idade, não pode ser admitido no convento. Quando os irmãos comunicam-lhe que lhe deixam a herança para juntar-se a Bernardo, a reação de Guy, relatada por Rops é a seguinte:
– Como? Ficais com o céu e deixais-me a terra? replica o rapaz. “Não aceito semelhante partilha.”
Também Guy partirá para Cister na hora apropriada. São cerca de trinta os nobres jovens que baterão à porta de Cister.
– Que desejais, pergunta-lhes o abade Estevão Harding.
– A misericórdia de Deus e a vossa – replicam os jovens caindo de joelhos diante do convento.
Um monge suave, afetuoso e firme, mas condescendente.
Os adversários do Cristianismo gostam de se ocupar da vida de São Bernardo. Já que a santidade é um enigma, torna-se a vida dos Santos a perdição dos historiadores ateus (ou agnósticos); quando perdidos em seus devaneios tentam achar numa polêmica ou numa frase o conteúdo adverso à vida devotada a Deus, para atribuir manchas à vida do Santo; para que nas manchas da vida justifiquem seu ódio ao Cristianismo, estes apelam, então, à mentira. Mentem porque não têm compromisso senão com a “sua versão da história”. E fazem adeptos…
Homem firme e líder monacal de vida austera, Bernardo dá azo aos oponentes para uma teia de mentiras. O que fica para a história, porém, é a vida devotada e o trabalho do Santo em prol do Cristianismo, mesmo quando este trabalho pressupõe reconhecer erros e se recolher de volta ao convento e rezar por aqueles que possa ter induzido ao erro de um combate perdido. Falo da Cruzada que ele pregou e que, sabemos todos, foi uma derrota diante dos mouros.
Mas estou me apressando, pois que estávamos com 30 jovens diante do mosteiro de Claraval, pedindo que as portas se lhes fossem abertas. O abade Harding assim o fez. Bernardo e os seus mergulharam na vida austera do convento. Quando deixava os muros de Claraval, Bernardo era um “pescador de homens” para trazê-los ao serviço de Deus. A figura do santo – ainda segundo Daniel-Rops, “irradia e impõe-se por toda a parte”. Quando ele aparece e fala é como se ouvissem “a flauta mágica da fábula alemã, pois milhares de almas ficam como que “enfeitiçadas” pelo seu chamado. O abade de Stavelot, monsenhor Wibald descreve o pregador Bernardo:
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“De rosto emaciado pela fadiga e pelos jejuns, pálido, de aspecto espiritualizado, e tão impressionante que só de vê-lo os ouvintes se deixam persuadir, mesmo antes de ele abrir a boca”. Quando fala o “santo asceta, sua emoção profunda, a sua arte incomparável, fruto de muito exercício, a sua dicção clara, o seu gesto apropriado a todos convence”.
Que pesca milagrosa o monge de Claraval obtém! Saint-Quentin, estudantes em Paris, além-mar em Inglaterra – onde sua fama chega trazendo postulantes à vida monacal. Passados poucos anos, os 30 viram 300 e o mosteiro de Cister, dois anos depois (com 25 anos) é enviado como “precocíssimo Abade”, para a fundação de Claraval (Clairvaux, “claros vales”). De Claraval, com as enormes dificuldades e a pobreza, Bernardo alça a fronteira com rigor, energia e amor aos seus monges, daí saindo “a filha de Claraval” a casa-mosteiro de Trois-Fontaines (perto de Montbard), e o outro mosteiro anos depois – em Foigny (próximo a Vervins); e, daí, a regiões mais distantes: Champagne (Igny), região do Vaud (Boumont); às margens do rio Reno (Eberbach, perto da Mongúcia); na Itália – com “Chiaravalle” e na Inglaterra (com Fountaines). No ano da morte de São Bernardo, são 160 comunidades dependentes de Claraval, várias na Irlanda, na Hungria, Escandinávia e na Espanha.
No Brasil de hoje contamos com oito convento – 3 do ramo feminino; 5 do ramo masculino. De um deles nos chega o estudo claríssimo do padre Luis Alberto Ruas Santos (O.Cist.) o cisterciense que não se nega a encarar as contradições do santo enérgico mas amoroso; do Bernardo contemplativo mas guerreiro, o homem de ação que não se nega a polemizar e combater o erro, onde quer que ele se apresente, pois para ele: “Os negócios de Deus são os meus, nada do que lhe diz respeito me é estranho“.
E se é Bernardo criticado por atuar em demasia, sabemos que o móvel de sua ação “não foi a ambição de preponderar mas o zelo pela Igreja” (R. Santos). A autoridade maior e espiritual incontestável de Bernardo colocam-no no centro do seu século – tempo de embates com as heresias e com os inimigos do Cristianismo. A franqueza que usa com seus monges é a mesma que adverte bispos, príncipes, grandes dignitários eclesiásticos e até papas. Sua autoridade vem da convicção íntima e implícita da autoridade que Deus lhe infunde e Bernardo nada teme pois sabe o papel que tem a cumprir na Igreja de Cristo.
A ironia que S. Bernardo usa com Arnaldo de Brescia é a mesma que eu tomaria por empréstimo para me dirigir os (neo)ateus que se valem das contradições aparentes da vida do Santo para tentar-lhe imputar erros que são os de suas mentes perversas:
– “Dizem que se encontra perto de ti, Arnaldo de Brescia, cuja conversa é como o mel e a doutrina como fel…este monstro com cabeça de pomba e cauda de escorpião…que Roma vê com horror, a França o expulsou e a Alemanha o abomina e a Itália não o quer receber.
Essa ira sagrada não a dispensa quando a contenda se põe no terreno da doutrina e da defesa da Fé Cristã e dos locais de ensino e de manutenção da vida consagrada – a universidade (que é uma criação do Catolicismo! recordemos) e do convento, onde Bernardo prezava o ascetismo em lugar da exibição e do fausto (Cluny versus Claraval).
Nos próximos capítulos, tratarei de evocar as informações que nos foram resumidas de uma vida tão pródiga por Daniel-Rops, incluindo a cruzada e a tristeza do santo; a perfeição que a idade concedeu ao Santo; a mística de Bernardo e a consciência do Século; a devoção à Nossa Senhora; além de transcrições de trechos do CANTICA vol.1.
Para finalizar, deixemos a palavra com o poeta italiano Dante, no Canto XXXI do Paraíso, em que Beatriz cede o lugar como guia “a um ancião, vestido como a gloriosa família” – a alva túnica cisterciense (ou o manto dos cavaleiros do Templo, cujos princípios originais foram redigidos por São Bernardo, antes da degradação de que foi corroída a ordem!)
(…)
“Assim orei, e ela, tão distante
quão parecia, sorriu e olhou pra mim,
e à Eterna Fonte volveu seu semblante.“E o santo ancião: “Por chegares ao fim”,
disse, “do teu caminho, a que um rogar
amoroso mandou-me, este jardimpercorre agora com o teu olhar;
o que o fará fortalecer, no aguardo
de nos raios divinos te elevar.E a rainha do Céu, por quem eu ardo
de amor, nos doará graça qualquer,
por mim, que sou o seu fiel Bernardo”Qual peregrino a nós vindo pra ver,
talvez da Croácia, a Verônica nossa,
que, por sua antiga fome, ainda a reverresta, insaciado, e um mudo apelo esboça:
“Senhor meu Jesus Cristo, Deus veraz,
então foi essa a aparência vossa?”,assim eu me sentia, frente à vivaz
benevolência deste que, no mundo,
cismando, já gozara dessa paz.“Ó rebento da Graça, este jucundo
sentir”, disse ele, “não te será noto
mantendo o teu olhar aqui pra o fundo;mas mira os giros até ao mais remoto,
onde acharás a Rainha divina
de que este reino é súdito e devoto.”(…)
“Tivesse eu, por dizer, tanta perícia
quanta pra imaginar Deus me cedeu,
nem tentaria contar tanta delícia.Bernardo, percebendo ora o olhar meu
ao seu Amor dirigido e presente
o seu com tanto afeto a Ela volveu,que o meu, à remirar, fez mais ardente.”
(91 -142, Paraíso, Dante Alighieri, trad. Ítalo Eugênio Mauro, ed. 34, 1998/2004.

Milagres de S. Bernardo. O duque da Aquitânia prostrado aos pés do Santo.
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Fonte principal deste post: DANIEL-ROPS, Henri, 1901-1965. São Bernardo de Claraval – testemunha do seu tempo perante Deus / trad. Emérico da Gama. – S. Paulo : Quadrante, 2013 (col. Vértice, 82), 126 p.