Dúvida e Fé (2)


Na semana passada, transcrevi um trecho do livro “Introdução ao Cristianismo”, e hoje dou sequência, com a parte em que o Bento XVI faz referência ao escritor francês Paul Claudel.
O tema naturalmente continua o mesmo – “Crer no mundo de hoje“, capítulo em que o papa inicia por levantar a difícil situação do homem diante da questão de Deus no mundo atual.
Quem tem diante de si a empreitada de dirigir-se aos seus semelhantes para falar da Fé em Deus tem, segundo Bento XVI, “a dificuldade de se fazer entender e também a insegurança de sua própria fé“, diz o papa falando da estranheza do empreendimento teológico nos dias de hoje (e o vejo aplicado até mesmo ao mais simples fiel Cristão que intenta dar testemunho de sua fé).

E adiciona a essa dificuldade, a imperiosa necessidade de levar a sério sua missão, reconhecendo a insegurança que pode assaltar sua própria fé e a dúvida que sempre assalta o próprio teólogo (ou mais simples cristão) – “o poder aflitivo da incredulidade presente em sua própria vontade de crer“.

Depois de citar o caso de Santa Teresinha de Jesus, transcrito no post passado, Ratzinger cita Paul Claudel – em sua peça poucas vezes levada ao palco e intitulada “Le Soulier de Satin” (O sapato de cetim, 1929), onde o autor captou essa situação do fiel numa visão grandiosa e convincente.
A peça é aberta com as palavras de um arauto que relata a cena de um naufrágio no Oceano Atlantico sul, em que o personagem em foco é um jesuíta, irmão de Rodrigo, protagonista, um humem mundano e aventureiro errante e incerto entre Deus e o mundo. “Este padre jesuíta, extremamente alto e magro – diz o arauto da peça: com a batina rasgada, através da qual se vê o ombro nu, reza:
– “Seigneur, je vous remercie de m´avoir ainsi attaché…” (Senhor, agradeço por teres me amarrado assim…). A peça dá a palavra ao jesuíta, para que, segundo o próprio arauto de Claudel, escutando o que o jesuíta fala possamos compreender. “O que não se compreende bem é o mais belo, o que é mais demorado é o mais interessante e o que se acha sem graça e o que tem mais sabor”, acentura Claudel.
O jesuíta que aparece na condição de náufrago, teve seu navio afundado por piratas, na costa de Espanha, tendo sido amarrado a uma trave do barco pelos piratas. Assim, preso a esse pedaço de madeira, virou um joguete das águas revoltas do oceano (1). É, pois, com aquela prece do jesuíta (transcrita acima) que a peça se inicia:
– “Senhor, eu te agradeço por teres me amarrado assim. Houve momentos em que achava difíceis os teus mandamentos, e, colocada diante de tuas ordens, a minha vontade se mostrava perplexa e fracassava. Mas hoje não poderia estar mais fortemente atado a ti do que o estou, e, observando um por um os meus membros, nenhum deles é capaz de afastar-se minimamente de ti. Assim me encontro realmente preso à cruz, mas a cruz que me prende já não está presa a mais nada, está flutuando no mar“(2).
“Atado à cruz, continua o papa, mas a cruz não está presa a nada e está flutuando sobre o abismo. Dificilmente se encontraria uma imagem mais precisa e instigante para a situação do fiel cristão nos dias de hoje. Nada mais que uma trave solta balançando sobre o nada parece sustentá-lo, e parece que já podemos adivinhar o instante em que ele irá soçobrar. Uma trave solta o liga a Deus; mas ela o liga de maneira definitiva, tanto assim que ele sabe, no fim, que esse pedaço de madeira é mais forte do que o nada que fervilha debaixo dele e que continuará sendo a verdadeira força ameaçadora da sua vida presente.
“O quadro apresenta, além disso, uma dimensão mais vasta que me parece até a que realmente interessa: o jesuíta à deriva não está sozinho; nele é antecipado de alguma maneira o destino de seu irmão; está presente nele a sorte daquele irmão que se considera um incréu, que deu as costas a Deus, porque acha que esperar não combina com ele, pois quer “possuir o antingível… como se esse pudesse estar em outra parte além de Ti”.
Não é necessário – destaca o papa Bento xvi – acompanhar aqui toda a trama da obra de Claudel: “como ele desenvolve a idéia central de sua história do entrelaçamento dos dois destinos aparentemente opostos, até chegar ao ponto em que a sorte de Rodrigo finalmente tangencia a do irmão, quando o grande conquistador do mundo, agora reduzido à condição de escravo num navio, já pode julgar-se feliz por ser levado embora por uma velha freira que com ele, um traste sem valor, arremata também umas frigideiras enferrujadas e um monte de trapos. Deixando de lado a imagem, podemos voltar à nossa própria situação para concluir: se o fiel só pode realizar a sua fé por sobre o oceano do nada, da tentação e da dúvida, sendo o oceano das incertezas o único lugar possível de sua fé, devemos admitir, dialeticamente, que o incréu, por outro lado, também não pode ser visto simplesmente como um ateu. Depois de termos reconhecido o fato de que o fiel não pode viver confortavelmente uma vida livre de problemas, porque está sempre ameaçado pela queda no nada, precisamos admitir agora, num segundo passo, que os destinos humanos se sobrepõem parcialmente, de modo que também o incréu não forma uma existência totalmente fechada sobre si mesma. Por mais que ele insista em agir como um puro positivista que há muito tempo superou as tentações e as vulnerabilidades sobrenaturais, vivendo agora só no âmbito da certeza imediata, jamais o abandonará a dúvida secreta a respeito do valor definitivo do positivismo. Assim como o fiel é sufocado pela água salgada da dúvida que o oceano não pára de lançar em sua boca, assim existe também a dúvida que o incrédulo nutre a respeito de sua incredulidade e da totalidade real do mundo que ele resolver erigir em seu tudo. Jamais terá certeza plena da completude de tudo o que viu e que ele declara ser tudo. Sempre será ameaçado pela pergunta: será que a verdadeira realidade não está na fé no que ela proclama?
Portanto, assim como o fiel se sabe constantemente ameaçado pela incredulidade que o acompanha como uma tentação sem fim, assim a fé constitui para o incrédulo uma ameaça e tentação para seu mundo aparentemente completo. Em outras palavras, não há como escapar do dilema da existência humana. Quem quiser fugir das incertezas da fé terá de suportar as incertezas da ausência de fé e nunca poderá dizer com certeza definitiva que a fé não é a verdade. Só na recusa da fé se revela a sua irrecusabilidade.”

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Fontes: *Texto montado com citações de “Introdução ao Cristianismo”, Bento XVI, Edições Loyola, 2005, pág. 31/36. E também de “Soulier de Satin”, Paul Claudel, Ed. Gallimard, 1929, vol. 1, pág. 18 e ss.
(1) A imagem lembra vivamente o texto de Sabedoria 10,4 que foi fundamental para a teologia da Cruz da Igreja nos primeiros séculos: “Quando …. a terra foi submersa, ainda uma vez a salvou a Sabedoria, conduzindo o justo num madeiro sem valor”.
(2) O drama de Claudel foi escrito de 1919-24 e lançado em 1929. Foi poucas vezes encenado pelas dificuldades e a extensão do livro (em dois volumes).

4 respostas em “Dúvida e Fé (2)

  1. Beto! Bom receber notícias suas! Vim aqui e vi que estás usando WordPress! Uma maravilha não? Não me queixo do joomla, que é fantástico também. Responderei por mail seu comentário, vamos fazer este assunto progredir.

    Um fraterno abraço,

    RR
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    Welcome back, Rafael!
    É, estou gostando muito do WordPress!
    Pouco a pouco os amigos dos tempos de blogs antigos, vão chegando.
    Seja muito bem-vindo!
    Já te respondi por email sobre projetos editorias.
    Abração,
    Beto.

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