Abaixo o texto na íntegra.

Havia o cronista superado aquela fase que Alberto da Costa e Silva tão bem define em seu inesquecível poema “Hoje: gaiola sem paisagem”, isto é, passava da meninice à adolescência. Creio que o benévolo leitor apreciará reler um trecho daquele poema, antes de entrar naquele cenário posterior: “Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora, menino. Por isso, venho de minha vida adulta como quem esfregasse na pureza e na graça o pano sujo dos atos nem sequer vazios, apenas mesquinhos e com frutos sem rumo. / Como se escovar os dentes fosse montar num cavalo e levá-lo a beber água ao riacho! / Como se importasse à causa humana ler os jornais do dia!
 
Hoje, revisitando aquele período, como um observador privilegiado de uma adolescência e juventude que configuram tempo de dúvidas, vejo-me em igreja e cultos, em torno de livros e namoricos, de culpa; foi um tempo que ser escoteiro fez nascer um espírito de camaradagem, e o tempo de férias trazia-me primos e primas, longe do Abrigo.
 
Porém, a síntese é que vivi um tempo de medo. De todos os medos, o Medo, o mesmo que feito mancha indelével não desgruda jamais de nós quando adentramos a vida de adulto, àquela “gaiola sem paisagem” do poema.


Se, por um lado, foi ali que consolidei minha ligação umbilical com a metafísica, descobrindo um misticismo não eclesial; de outra parte, foi onde acumulei o maior conta-giros de culpas e temores.
 
Não é incomum que eu reveja um menino magricela de banho recém tomado, olhando curioso os periquitos que revoavam, no fim de tarde, em Anápolis, na florestinha de eucaliptos, a um só tempo encantado e assustado com o pôr do sol, rebrilhando nos eucaliptos da quadra em frente ao Abrigo (área dos missionários americanos, e importante caminho para o rito de passagem).
 
Criado ali por pais adotivos de confissão cristã evangélica, aprendi desde cedo “o caminho em que deveria andar”. Os protestantes daquela época, ainda em minoria no país, eram zelosos no culto dos hábitos e no hábito do Culto. Se hoje continuo rezando, devo a eles o aprendizado das preces antes da refeição, às quartas e aos domingos (cedo, quando jovem, na chamada escola dominical e, à noitinha, com os adultos).
 
Foram eles os responsáveis por consolidar minha fé no Criador, que minha avó Cecília havia transmitido desde muito cedo, antes do tempo do Abrigo. Então, quando me mudei para Goiânia, aos 17 anos incompletos, vivi um tempo de descrença e abandono de qualquer culto. Em Porto Alegre, para onde mudei-me logo que me casei, voltei a pensar menos na realidade crua do dia a dia e comecei a frequentar os cultos entre os Episcopais.
 
Finalmente, espelhado no exemplo de minha sogra-mãe (e da minha esposa), passei a comungar da fé Católica. Hoje, mais de vinte anos depois de minha Crisma na Paróquia Nossa Senhora Aparecida em Goiânia, posso dizer que meu misticismo e minha fé se fortaleceram no convívio com a Igreja e com as orientações do meu conselheiro espiritual da idade adulta, Padre Rubens.

Sigo de olho na realidade, ao mundo físico, mas com um olhar ainda mais firme para o Eterno, o metafísico. Neste olhar para o passado, no entanto, me é impossível deixar de flagrar uma melancolia tangível em torno ao adolescente assustado que fui. Parece que às vezes se pode flagrar uma lágrima. Parece, como nesses versos do chileno Vicente Huidobro (trecho de Canto V de Altazor, 1931):

Você viu o menino que cantava
O menino que cantava preso a um soluço
Ou a um latido de um cão inconsolável?
Você viu o arco-íris sem cores
Terrivelmente envelhecido
Que volta do tempo dos faraós?
O medo muda a forma das flores
Que esperam tremendo o Juízo Final…
 
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