A dispersão do entusiasmo
Por Adalberto de Queiroz, especial para O Popular

Enquanto escrevo essa crônica durante o Carnaval 2023, no silêncio da minha biblioteca, as marchinhas ou sambas-enredo dominam os ouvidos de muitos vizinhos. Mas aqui impera “O carnaval dos animais”, música de Camille Saint-Saëns (1835-1921), compositor, organista, maestro e pianista francês da era Romântica; ouço a obra póstuma, principalmente “O cisne”, e seu dominante violoncelo, naquele que foi o único movimento autorizado pelo compositor a ser publicado em vida.

De olho no noticiário, tomo conhecimento que a região Sudeste está debaixo de um aguaceiro sem precedentes, mas nada incomum neste período pontificado pelo rei Momo. Ainda contando seus mortos, a população brinca o Carnaval, assiste aos desfiles das escolas de samba e tenta se esquivar da tragédia sob plumas e paetês, com pouca roupa, em desfile ou seguindo os blocos que se deslocam em transe, de um bar a outro em busca de fazer valer o espírito da época.

O clímax orgiástico parece ser o alvo último da dança geral, desejosos todos por antecipar o triunfo de Eros sobre Tânatos, da vida sobre a morte, esta que ainda espreita através dos fenômenos meteorológicos. Nada etéreas, silhuetas seminuas desfilam na avenida, e por pouco não teriam que se comportar como sereias de verdade, pela chuva que inundou a avenida.

José Guilherme Merquior, pensador que faz muita falta ao cenário intelectual do Brasil, ressalta (em Saudades do Carnaval), com muita propriedade, que

o delírio orgiástico, a celebração dionisíaca, o transe coletivo são válvulas plenamente reconhecidas (embora enquadradas) pelas culturas de tipo arcaico; elas permitem ao indivíduo e aos grupos sociais um periódico desforrar-se das suas opressões e frustrações. Na festa orgiástica – saturnais, carnaval –, a sociedade vivia o reconhecimento da sua própria contestação”.

Merquior nos lembra que era outro o Carnaval, quando misturava o teatro de feira (ainda revivido em certa medida, por exemplo., nos bonecos de Olinda) ao saturnalismo orgiástico, quebrando modos institucionalizados de relações, encurtando distâncias ao misturar adultos e crianças, velhos e jovens, governantes e governados, senhores e vassalos, ricos e pobres – a todos incorporando nos festejos, como membros de uma única e grande família.

Em família, participei de muitos carnavais com minhas filhas ainda meninas, para quem minha mulher costurava fantasias e íamos às matinês do clube da Caixa. Eu, quando criança, vivendo com uma família protestante, não apreciei as delícias da festa popular, mas ao casar-me a vida me proporcionou conviver com os bailados e até testemunhar os desfiles das escolas de samba, entusiasmo que já se arrefeceu bastante.

O que posso dizer do Carnaval senão que o mais antigo está emoldurado por uma janela numa casa de tio ou tia no Recife de minha primeira infância, de onde o menino apreciava curioso o desfile dos blocos coloridos. Mais razões tinha o poeta pernambucano (e universal) Manuel Bandeira a dizer sobre o tema, tanto que escreveu um livro inteiro com o título da festa, de onde salta esse “Epílogo”:

“Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um Carnaval todo subjetivo:
Um Carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior…

Quando o acabei, – a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade…
E o meu tinha a morta morta-cor
Da senilidade e da amargura…
– O meu Carnaval sem nenhuma alegria!…”

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