O canto alheio

É do poema de Bruno Tolentino que me salta a inspiração:

“…busco um meio
de fazer da lição o uso mais certo,
ou menos parecido com o enxerto
que se vive a extrair ao canto alheio”.

 

E mais, falando do poeta irlandês W.B.Yeats, o bem-amado poeta do testamento literário de BT:

“Segundo o último Yeats, o acordado,
tudo o que não é Deus, se consumindo
no incêndio do intelecto, é um repentino
holocausto de sombras…”

A vida talvez seja – do que não levou adiante seu dom recebido e viveu à sombra de outras frondosas árvores frutíferas, no conforto do sonhar o sonho alheio -, a pura inspiração o canto alheio.

Transcrever, pois, é a melhor arte (justificativa do não-silêncio, quando por vezes bem ressequida a própria árvore – é como gerar sombra com a copa dos outros); mas eis que lembrar, lembrar (com Deus sempre presente na lembrança), e não deixar a memória ressecar de todo da Arte que outro de fato construiu. Eis uma saída para justificar o canto alheio. Eis um caminho para fugir ao holocausto de sombras. (AQ).
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Fonte: TOLENTINO, Bruno. “Os Deus de Hoje”, Rio de Janeiro, Record, 1995, p.242.

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Sexta-Feira Santa

Ah que o Amor de Cristo nos constrange :
Depois d´Ele, nenhum cordeiro imolado, não mais.
Depois do processo e infâmia contra o inocente:
– Não mais ovelha sacrificada, não mais…
Em nenhum altar invocado o sacrifício, não mais.
Depois dele, nenhuma vítima inocente, não mais.
– Só a cruz erguida.
Só essa árvore cósmica.
Esse madeiro pro náufrago à deriva…
Suas raízes  penetrando o dia-a-dia
Do que crê.
Arrostando
O lombo do
Descrente
Ralo da dúvida.

“O Cristo não venceu apenas a Morte, Ele venceu também a solidão humana. Em vão acusam a Cruz de fazer sombra à vida. A Igreja nos responde, com uma alegria cheia de lágrimas, na Quinta-feira Santa: “Ecce enim propter lignum venit gaudium in universo mundo…” (*)

(*)“Crucem tuam adoramus, Domine, et sanctam ressurrectionem tuam laudamus et glorificamus: ecce enim propter lignum venit gaudium in universo mundo” : adoramos, Senhor, a tua Cruz, e louvamos e glorificamos a tua santa ressurreição: por causa do lenho da Cruz vem a todo o mundo o gozo (Antífona1ª para ser cantada enquanto se adora a Santa Cruz).

E para fechar essas reflexões desta Sexta-Feira Santa, 2009, um poema de Bruno Tolentino, intitulado O Segredo:

O Cristo não é
um belo episódio
da história ou da fé:

nem o clavicórdio
nos dedos da luz,
nem o monocórdio

chamado da Cruz.
O crucificado
chamado Jesus

é o encontro marcado
entre a solidão
e o significado

do teu coração:
de um lado teu medo,
teu ódio, teu não;

de outro o segredo
com seu cofre aberto,
onde o teu degredo,

onde o teu deserto,
vão morrer, mas vão
morrer muito perto

da ressurreição.

Poema O Segredo, “As horas de Katharina”. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 180. Citado por Pedro Sette Câmara.
(*)Mauriac, “Sofrimento e Felicidade do Cristão”, p. 182.

Piero della Francesca ou: “o companheiro da argila deste mundo”

ELE devia se chamar Piero dei Franceschi, mas quis a história sobrepor-lhe o nome da mãe (que se chamava Romana de Monterchi)… Ignora-se porque o mestre de Arezzo seja “della Francesca”. Sobre os dados corretos de registro – incluindo seu nome de pia –  pouco se sabe, dizem os especialistas, porque perdidos nas brumas da história. Dos poucos dados existentes sobre a vida (do ano 1410 a 20-1492), uma certeza: era já reconhecido em vida como um mestre, um grande entre os grandes da pintura italiana e continuou influenciando gerações seguintes; frequentador das cortes de Ferrara a Rímini, de Urbino à Roma papal, é no pequeno burgo natal que mais lhe agradava pintar e viver e influenciar… o Borgo San Sepolcro, onde participa da vida política e social e é sepultado.

O que o mantem vivo são seus afrescos do Ciclo de Arezzo, pois continuam a ser objeto de extensa literatura crítica e eterna admiração. O olhar deste pobre fiel, vivendo os desastrados anos do vigésimo século e do início deste XXI, querem expressar o deslumbramento de quem mendiga fé e luz – como na voz do poeta Bruno Tolentino, que expressou tão bem o que essa prosa seca e murcha falha ao tentar o mesmo, no cair dessa noite do 3º. domingo da Quaresma `09:

24
Deixai-me celebrar tudo o que morre
abraçado a precários estilhaços,
o mundo de Piero entre pedaços
de cal arruinada, mundo-córrego,
livre, de gestos amplos como torres
erguendo-se sozinhas, como braços
pesados, suplicantes nos espaços
do real…Essa esmola ainda socorre
os mendigos que somos neste beco
curto, obscuro, estreito e sem saída,
o beco dos desastres desta vida.
Deixai-me celebrar aquele seco,
alto, argiloso e duro como esterco,
velho resto leproso, de ferida.

A parede caiada que vai se apagando com as marcas do tempo ainda testemunha a grandeza da oferta que nos dá o toscano, testemunhando até hoje o valor moral de sua arte, a religiosidade popular das cenas eleitas para ser eternizadas pelo artista. Na Construção e Prova da Cruz, revivemos a procissão antiga em torno da cruz.

E eis que do meio da multidão um homem me anuncia com suas mãos postas em prece,historias-da-santa-cruz_piero_detalhe o sentido inteiro dessa fase do ano litúrgico. Basta vê-lo para entender os versos do poeta Bruno e intimidado me nego a rabiscar outros no futuro:

25
Entre o instante e a argila vai passando

a doce mão da luz que esfuma e tece
o real outra vez; de vez em quando,
a velha tecelã, quando parece
ceder a sombras e penumbras, desce
pelo outro lado do visível dando-

lhe os laços pelas costas: surge o bando
de vaga-lumes que ela fez, ou fez-se

em torno dela. É assim o claro-escuro
natural às colinas da Toscana,

combinações do puro com o impuro,
e o olhar de Piero é seu grafismo:

nele a equação da luz é quase humana,
grave como o salgueiro sobre o abismo.

E se ao final da vida os olhos do pintor não pudesse captar a luz e as cores da terra natal, sua mente claramente continuava a dizer-lhe o caminho da pintura: “porque o dia/em seus olhos tremia como estrelarezasanta-cruz_piero_detalhe2

E assim, olhos trêmulos e úmidos, cá nos encontramos séculos depois,  aprendendo o caminho da prece comovida e silenciosa…
Ah, claro como a cor
da cinza que ele amava,
o companheiro da argila deste mundo…

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Fontes:
Quadro: Histórias da Santa Cruz – afresco do coro da igreja São Francisco, Arezzo, (detalhes e parte do texto ext. de Mestres da Pintura, Abril Cultural, 1978). Poema cit. Tolentino, Bruno. “O Mundo como Idéia“. Ed.Globo, 2001, pág.401.
Mais sobre a história preliminar ao quadro, aqui!