A SEMANA passada começou sob forte chuva. Na segunda-feira úmida, movido pela carga natural que as segundas-feiras costumam depositar sobre meus ombros, me vi de mau-humor – agravado pela umidade deste verão no cerrado goyano, sentindo-me impotente diante da evidente onipresença da chuva sob os pés, os olhos e em meus ossos e membros (gotas finas persistentes, gotas grossas, acompanhadas de um céu nada acolhedor – muita chuva); na segunda-feira pela manhã, dizia-lhes: debrucei-me à janela do escritório como o garoto antigo e assustado que se movia para o colégio há alguns (muitos) anos atrás, com o medo ancestral (de gaulês antigo) de que o céu me cairia sobre a cabeça.
Lembrei-me do comissário Maigret naquelas passagens em que Simenon o faz surgir para o leitor olhando a chuva de sua janela na Paris dos anos 50, enquanto acende seu cachimbo – este ato que dá forma e consistência ao início do dia do personagem – e que também parece dar força, para nós leitores, diante dos embates do dia-a-dia, como se ao ritmo das gotas tamborilando na janela admitisse num sussurro:
– Bem-Vinda, senhora rotina.
Não era esse o meu caso. Sentia-me na pele do comissário, mas com grande mau-humor trazido por aquela manhã em que até o ato de se barbear parece tornar-se uma rotina desagradável (obrigatória já o é há muito), pois não temos o sol por testemunha e ainda perdemos o álibi dos pássaros, ou da vizinha que nos sorri ao passar sob nossa janela. Estamos sós nessa rotina da disciplina de higiene diária, num dia que se inicia obrigando-nos a tirar o velho guarda-chuvas do seu gancho habitual e procurar a capa com a nostalgia do chapéu que era moda ao tempo dessas estórias de Maigret.
Uma semana depois, acordo sob o véu cinzento da cidade de São Paulo, mas o astral mudou. As razões que me trouxeram a Paulicéia não eram apenas comerciais e sim envolviam o melhor do afeto familiar: devia ajudar minha filha caçula em sua mudança para essa metrópole – tudo tem um ar de doce aceitação, mesmo da persistente chuva que nos castigou quase todo o tempo de estada na capital.
Da janela, logo cedo descortino o horizonte que a Vila Mariana nos permite e me entristeço com a cena de uma família de migrantes que se arranjam como podem sob uma lona amarela, enfrentando a chuva e a fria umidade em pleno canteiro central da Vergueiro. Ainda dói ver as circuntâncias como se recapitulasse na mente a inteira fórmula de felicidade do inglês Bertrand Russell para quem é pouco o requisito para se iniciar no caminho da felicidade – e entre os requisitos está a casa deste homem que busca com garra a felicidade. Serviu-me a cena matutina na Paulicéia inundada para me afastar o mau-humor e pensar no caráter vetorial da felicidade. Pensar no Outro como um ser instalado precariamente e que enfrentava o aguaceiro e a carência com denodo e bravura, diante de quem meu humor de classe média não resistia a mais mínima barreira com sua susceptibilidade.
– Mas, ah, que “a felicidade se defende mediante desvios ou rodeios” (1) e mesmo em condições diversas, eu me ponho de pronto em comunhão com aquele homem em sua luta diante dos obstáculos, como se me irmanasse em pensamento a um casal, que encontrei na estrada caminhando impássivel sob a chuva, prosseguia de frontes erguidas sob o aguaceiro, sem muxoxos, em sua viagem em busca de sua felicidade…
Era da mesma cepa e estirpe aquele casal no meio da chuva que me inspirou ainda jovem a escrever os versos a seguir transcritos. E isso já faz 22 anos…(2):
“…Que esperança a nossa:
Eu e esse casal
De mãos dadas pela via Anhanguera
Em que passo?
Que esperança a desse menino de bicicleta
Medindo o espaço que se abre
Em seu quintal?
Que esperança
Em todos nós
Pelo mundo em sua rota?
A mesma porção de fé
Que nos iguala ao cão
A se esconder do frio
E do trovão em meio à chuva
Na mesma medida de espera
Das aves que suportam
Chuva e frio
Iguais existimos
E sob as dificuldades
Do limbo arrancamos
Uma raiz de vida e resistimos.”
+++++
Fontes: (1) A Felicidade Humana, Julián Marías, Duas Cidades, S. Paulo, 1989.
(2) “Frágil Armação: Poemas”, A. Queiroz, Edit. Barão de Itararé, Goiânia, 1985.
Curtir isso:
Curtir Carregando...