A lição das caraíbas

A crônica nasce do choque entre a imaginação e a realidade. Não há declaração de amor entre esses dois entes. O que existe mesmo é um choque físico, um fenômeno simples…

Se é verdade que toda obra de arte é a solução de um problema, há nesse gênero de expressão a semente de um problema a ser solucionado, tal como no aforismo há plantada a força compacta do autor que não pôde se dedicar ao desenvolvimento completo da Idéia (1).

No caso deste cronista é bom que o momento do choque seja exposto ao leitor imaginário para que este participe de modo ativo como parteiro ou padrinho da idéia nascente. Eis-me aqui no quarto de hotel, longe de casa, do conforto do lar, da companhia da família, distante dos livros, do latido do cão, da proximidade confortável do ambiente em que cometo alguns poemas e croniquetas. Sem as muletas preferenciais da crônica – os livros lidos e relidos, sem o almofadado mundo familiar, somem os assuntos para pauta que mereça o desenvolvimento esperado pelos leitores.

Estou em Brasília e a cidade me fornece seus da(r)dos. A cidade vista do quarto de hotel, do sétimo andar, em meados de agosto expõe seus esplendores e misérias. Não é preciso ouvir o noticiário,abre-se a janela e o céu azul deste agosto de baixa umidade e secura expõe o cronista sem assunto (e sem terras) a um choque – é o pretexto que tem para acionar o motor da idéia.

Há 49 agostos convivo com essa demonstração cíclica do tempo, que alterna chuva e seca na maior savana do planeta, mas nunca me pareceu um espetáculo tão eloquente como agora.

Da minha janela, no quarto de hotel, repete-se em dose urbana o que testemunhei em toda a estrada (Goiânia-Brasília). Assistimos à resistência do cerrado à baixa umidade e à secura, que nesses dias tornam sufocantes as tardes para os animais e as plantas. Mas no meio do cerrado seco e da relva aparentemente morta, descortinamos duas espécies em plena florada: os ipês e as caraíbas. A caraíba vê suas primas ricas – ipês roxos e amarelos – exibirem suas cores, enquanto ela, pobre caraíba cumpre seu dever com um estoicismo apreciável e com regularidade de monja. Todo agosto, lá está a caraíba, nossa irmã do cerrado abrindo-se em flores amarelas, belíssimas, mesmo quando um agricultor põe fogo no cerrado ou um motorista imprudente atira-lhe um toco de cigarro que cresta tudo a sua volta.

Em meio ao cerrado seco e pintado de cor palha, lá está a caraíba atestando a força da natureza e a beleza do criador em seu testemunho silencioso, diante de nossas retinas preguiçosas e desatentas e nossos 18% de umidade relativa, nossa mínima esperança de viajantes e cidadãos desta savana e do planeta, com nossas almas desfolhadas…

Deveria o cronista lamentar-se como Anatole France, que não se sentia à altura da Academia de Ciências, “je ne peut que gémir d´être exclu des temples de la certitude“, mas meus gemidos são de outra natureza, pois, desolado me sinto diante de outros templos de certeza em nosso tempo, em nosso país. Esses parecem querer excluir o cronista que se atreva a dar sua interpretação do tempo presente com a armadura da fé cristã e a expressão da poesia.

Mas aprendemos com o filósofo professor Olavo de Carvalho “que todo problema que nos acerta no coração ou no fígado só pode ser expresso poeticamente…” E isso é como água fresca para o cronista-poeta. É como nova umidade e frescor – eis a retórica das caraíbas lhe dizendo: Olha ao redor e vê quão animador é o esforço da contínua busca do belo, do bom e do verdadeiro.

Eia, anima-te, com o exemplo das caraíbas e lança tua crônica ao vento da internet”. Aventuro-me, lembrando que dia desses, repetia para os anônimos leitores das 8 Colunas que, chegado à beira dos cinquent´Anos, lembrava-me do texto do austríaco Hermann Broch, sentindo que estou diante de uma grave questão – a da atitude diante da minha época. Às vezes, a alta onda que se levanta derruba-me, sinto-me acachapado, nocauteado por essa onda forte que se levanta, vez por outra como numa savana queimada.

Uma revista semanal me jogou-me à cara, no domingo passado, uma reportagem sobre o cidadão Ibsen Pinheiro, vítima de uma injustiça da nossa dita melhor imprensa semanal. Onze anos passados e lá aparecem as ´correções`, as tardias erratas de uma contravenção não mais passível de ser punida. Lido o texto, reflexões dolorosas depois, decidi-me a enviar uma carta à redação da revista, tornando pública minha revolta com os rumos de nossas instituições, de nossa pobre pátria que levantava esse pequeno véu para bater-se com outro mais hediondo que surge da presidência da república, por pouco avistada em suas peraltices neste agosto, desde o ponto de vista da minha janela do meu quarto d´hôtel…

A reflexão leva a pensar sobre os erros vários em que incorrem as instituições, agora ameaçadas da Nova Censura republicana, pobre pátria, patriazinha sem memória, incapaz de fazer conexões históricas, entre causas e efeitos daquilo que agora nos abate.

Pensa o cronista: ficamos moderninhos demais com todos estes aparelhos telefônicos móveis, com este governo de talhe esquerdista pós-moderno, com essas invasões de terra, com este desrespeito ao outro que aboliu a gentileza de trato e instaurou um baixo ticket de valor à Vida nas grandes cidades.

Em lugar disso o que fizemos com os valores permanentes da Vida? O que fizemos com a força da Fé, o liame do Afeto dentro e fora da Família, o poder do trato, da promessa, do Voto (não, não este que se põe nas urnas como obrigação eleitoral, mas o Voto, as juras e os contratos que não se deveriam se desfeitos por um “qualquer dá-cá-uma-palha”); o que fizemos do Ensino e da formação de nossos jovens, da Educação como esforço pessoal e não apenas como “dever do Estado”?

– O que fazer se tantas Vidas são baseadas na ausência do Amor e da Caridade?

Ficamos moderninhos demais, com nossos celulares e internet (agora mesmo celebramos noss recordes na comunidade web, intitulada Orkut como uma realização hiperimportante), mas mantemos os joves distantes dos livros, da educação clássica, do respeito ao outro, como num cerrado tostado pelo fogo dito ‘modernizador`.

A regilião, a família, a alta cultura que só pode advir de uma formação clássica (vejam crônica do poeta Fábio Ulanin na Web) pode apagar o fogo destruidor do dinheiro fácil, do esnobismo, do achincalhe ao Outro, e da mínima e básica falta de educação e boas maneiras que virou moda em todos os lugares públicos – incluindo shoppings, cinemas, escolas…

Contra a secura de tantas perdas no cerrado de nossas vidas que estamos nesse jogo de educação cívica (ou seria de Educação pura e simples?) proponho atentarmos ao ensinamentos que emanam da lição da caraíbas.

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Fontes:
(1) A frase citada é do resumo da Aula 8 de Olavo de Carvalho, “O Advento do Cristianismo”, ed. É Realizações, S. Paulo, 2001. (AQ).

(2) *Original publicado no blog 8 Colunas, em 2005.

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