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”MUDANÇA”: LIVRO LIDO de um só fôlego, nas férias do último verão, em Recife. Dito assim, parece que a apreciação crítica ficaria diferenciada, se lido em uma gélida biblioteca de Oslo ou Nuremberg.
– Fica, sim sr. Leitor, respondo silencioso.
Primeiro, porque a lassidão se vai esvaindo com a visão do mar e
os dias de relaxamento, com o ameno relacionamento entre os membros da família (em veraneio); o distanciamento das rotinas, e até do descumprimento dessas; depois, estar à beira-mar é como se a imaginação mais se dispusesse a deixar-se levar pela leitura.
Porém é certo ainda que, se estivesse condenado ao frio de Oslo ou à solenidade vetusta de Nuremberg, por certo eu acharia outas razões para ler e escapar do real pela janela da imaginação…
Na leitura, manda o Autor. A força de seu texto é que faz toda a diferença, muito além (e antes) do clima ou do estado de espírito (ou do conforto) do Leitor. Mas é o Leitor a autoridade absoluta, quem decide ir à biblioteca, à livraria, ao sebo ou ao website. Aí, corre os olhos às lombadas de volumes sem fim, até que uma capa ou um título o agarra (há quem os furte!) e assim procura um banco, uma mesa, em sua casa, ou hotel e se enfurna para ler. Há os que lêem no ônibus, no metrô, a caminho de casa, como o destinatário de uma carta, impaciente para ler notícias da família distante.
Sob a demanda de escrever uma espécie de documentário, Mo Yan, o prêmio Nobel de 2012, nos presenteia com uma série de estórias entrelaçadas que nos deixam ver para além do véu da antiga censura maoista, como uma janela aberta ao ocidental sob o olhar e a experiência de vida de um “poeta” cinquentão (Mo Yan nasceu no mesmo ano deste resenhista: 1955) – a se lembrar da infância, da juventude, da vida inteira, enquanto seu país vai aos poucos se modernizando e se abrindo aos costumes ocidentais.
MO YAN pega o Leitor pela gola, segura-o firme, e – ao contrário do seu professor que o expulsa a chutes da classe, vai conquistando o Leitor pouco a pouco, encantando-o com a mágica da escrita –; o que ele faz pela construção apropriada de seus ‘personagens’.
Seguramente, mesmo num livro de encomenda, estes não são homens de palha: o professor, o aluno (narrador), a colega bonita, que se sentava a seu lado na escola; o brioso caminhão Gaz ‘51; seu colega que se enriquece com o advento das regras de mercado à China – todos com seus nomes difíceis de se guardar, mas que são caracteres bem definicos. Da China fechada em si mesma, sob o domínio dos comunistas de aldeia e dos comissários que em tudo mandavam, incluindo a inscrição militar e suas vantagens; da China dos tempos de seus (dele) avós… até a China dos arranha-céus e do moderno ensino superior; da revolução no campo (e “todo o poder ao partido comunista”), dos camponeses aos militares, é a vida na China que passa nessa janela de leitura. MO YAN nos convida e nos transporta com maestria de Narrador:
“O que quero narrar deve ter acontecido depois de 1979, mas o fio do meu pensamento teima em ignorar esse limite e volta àquele outono de 1969, com seu sol radiante, seus crisântemos dourados e seus gansos migrando para o sul. Nesse ponto, já não distingo de minha lembrança. Meu pensamento, ou aquele eu que fui um dia, um menino solitário expulso da escola, mas ainda atraído pelo vozerio que vinha lá de dentro …” (Leia mais)
O que me atrai em MO YAN é essa capacidade de imaginar e narrar com uma naturalidade própria de quem rememora fatos antigos, não como um historiador ou um cronista do passado (com textos acadêmicos ou laudatórios). É como se estivesse àmesa com o Leitor, contando-lhe fatos antigos, saborosos, divididos com uma alegria inenarrável – desnudando-se, como só os mestres da narrativa e os verdadeiros escritores sabem fazer.
O Autor volta a ser o “menino expulso da escola”, aquele “pequeno atrevido e bocudo” – como o “professor Boca Grande”, visto cinquenta e tantos anos depois, está lá vivo na memória de MO YAN:
“Desde pequeno sou atrevido, desde pequeno sou desastrado, desde pequeno sou mestre em arranjar sarna para me coçar. Muitas vezes eu só queria puxar o saco do professor, mas ele logo imaginava que ali tinha armadilha. MInha mãe
suspirava: ‘Ai, filho, você é uma coruja de bom agouro, não faz jus à fama’. (…) Muita gente achava que eu tinha um parafuso a menos, que era um cabeça-dura e que odiava a escola e os professores. Total equívoco. Na verdade, eu nutria um sentimento profundo por minha escola, em especial pelo professor Boca Grande. Porque eu também era um menino de boca grande. O menino em meu conto ‘Boca Grande’ foi inspirado em mim. O professor Liu Boca Grande e eu estávamos, na verdade, unidos pelo infortúnio. Devíamos ter mais compaixão um pelo outro. Bem diz o ditado: quem sofre a mesma doença, sente a mesma dor.” (p.13).
Pensando nas pequenas narrativas ao longo do livro, concluo que a encomenda do sr. Naveen Kishore, feita em 2009 a Mo Yan – “um texto sobre as grandes tranformações ocorridas na China ao longo das últimas três décadas…” – nos propiciou acesso a algo saboroso que nos faz desejar ler mais do autor. Esta resenha não se ocupa de posicionar a Mudança do ponto de vista político-social, coisa que já foi muito bem feita pelos veículos do jornalismo diário ou semanal: a cobertura de Veja , para mim, nesse sentido é exemplar.
Desejoso de ler mais da obra de Mo Yan, constato que, além da referência a “Sorgo Vermelho” – o clássico que se transformou em filme e em episódio recontado pelo autor em “Mudança” – há muito pouco do autor publicado em português. Essa lacuna deve ser preenchida ao longo de 2014, depois da repercussão dos prêmios concedidos a MO YAN. Para quem está habilitado, há muito de Mo Yan a ler. Confira nos links em Inglês e em Francês.
Dos livros comprados e lidos nas férias deste verão, dias depois da leitura, comparando “Mudança” (YAN), com “Fim” (Fernanda Torres) e pensei: eis a diferença entre dois livros – impossível comparar mudança com fim. Afinal, um foi composto por alguém que é do ramo. Vemos aí um literato versus uma (boa) atriz – como escritora, uma excelente humorista, que até tem uma queda para redigir scripts e sketchs – mais que no livro não faz senão confirmar escrita de algo esboçado, personagens sem alma, ocos, homens de palha. Fim não é narrativa que mereça o aplauso deste leitor, apesar do ruidoso barulho da mídia brasileira.
Conclui o blogueiro que é impossível comparar “Fim” com “Mudança”.
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Fonte: MO YAN, “Mudança”. S. Paulo, Cosac Naif, 2012. 128 pp.