Em meio à noite, eu me recordo das palavras de um velho escritor português e seu tom arcaico, pronunciado em crônica datada de 1886, a frase não me chega inteiramente como deve ser agora lembrada aos leitores:
“…Dia seguido a dia, melancolicamente, esterilmente, nos foge o tempo… O dia de Natal vai de novo chegar. Com quanta saudade do doce e risonho tempo da minha infância eu o digo! Vai dar a hora de se retirar do presépio iluminado e florido, do centro do grupo orante dos pastores e dos Reis Magos, a sorridente imagem do mimoso e terno Menino destinado a padecer e a morrer crucificado para remir os homens”.
É o que basta!
Não durmo mais. Põe-se a minha mente em marcha como oficina em progresso, a pensar sobre todo este evento que não quer e não deve calar. E como se não houvesse vencedor nessa batalha dos pensamentos, deito-os ao papel, antes que eu mesmo faça a volta ao leito revolvido pela gravidade do pensar.
Penso em toda uma multidão que se movimenta de um canto a outro, nas grandes ou pequenas cidades, em ambientes festivos, portando o melhor de seus sentimentos e de suas roupas, nas grandes cidades em direção a grandes luzeiros: são árvores de Natal iluminadas ou arremedos de árvores nos prédios, nas praças, nos lagos e esses meus irmãos vão sempre em direção às luzes.
Vê-se o espetáculo das luzes pela televisão, reproduzem-no pela grande rede Internet. Os homens buscam a Luz.
No entanto, vejo que vamos, muitas vezes, apressados demais sem nos darmos conta que na profusão de vitrines que disputam as nossas retinas cansadas, reside uma super-exposição aos chamamentos do comércio.
Há nas crônicas do velho lusitano uma denúncia do excesso de exposição de guloseimas típicas do Natal lisboeta que, visto tantos anos depois, são um esboço em sépia do que viria a ser, não a sua saudosa Lisboa, como todos os grandes centros comerciais do mundo atual, presos desde então àquele “aspecto culinário da abundância e da plenitude”, ao que hoje vêm se somar outras nuances decorativas que levam à exaustão do consumo.
Serve-nos o autor outras delícias: as lembranças do presépio, da Sagrada Família, do Menino Jesus saudado pelos pequenos fiéis na Missa do Galo. A ceia em família e a Árvore de Natal, tardiamente adotada na província portuguesa – serve ao autor das “Farpas”, para lembrar-nos que o auge da celebração era a Família.
No presépio, diz-nos Ramalho Ortigão, era como se “a cristandade em peso se afigurasse descendo do mais alto monte em direção ao tabernáculo”, propiciando celebrar com inusitada alegria, com paz de espírito, com inocência e bondade…
E assim, era o Natal alegria para as crianças e sempre de alguma saudade para os adultosl
Mas, afinal, que evento é esse?
Por mais que uma imprensa, cada vez mais pagã, o queira, não consegue apagar a grandeza do episódio lembrado no Natal. O fato histórico é esse: a humanidade lembra o Salvador.
É bom relembrar o nascimento de um menino que mudou o curso da história.
O poeta Virgílio e o profeta Isaías o anunciaram:
“Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho; e chamá-lo-ão Emmanuel, que quer dizer Deus Conosco”. Eis o mistério da fé e o centro do acontecimento que nos move agora: aquela vela que se acende nos altares de nossas igrejas, ou a luz que simbolicamente acendemos em nossas árvores são uma e a mesma reprodução da luz que o Menino Jesus trouxe à humanidade com seu nascimento.
Eis a gravidade e a ferocidade do pensamento: como comunicar aos outros a grandeza deste episódio? Deus se faz homem, nascendo da Virgem Maria, numa mangedoura em Belém da Judéia, há dois milênios atrás.
Quis o Pai que fosse na Judéia e que fosse num lugar humilde – a mangedoura – que a Natividade ocorresse e donde a Luz se irradiasse sobre toda a humanidade. Quis que o mistério de sua vinda fosse anunciado por um anjo a uma virgem de Nazaré. Quis que uma estrela anunciasse a Natividade aos sábios – outro símbolo de que a Luz que buscamos está envolta nos panos simples daquele Menino, lembrado no arcaico presépio, advindo de uma virgem que concebeu pelo poder do Espírito Santo.
Se você não compreendeu isso, dileto leitor, é sombra o que acende com suas mãos ao ligar a árvore de Natal.
Pouco importa quão bem decoradas estejam as lojas, quão iluminadas as avenidas, quão doces os quitutes que lhe esperam à meia-noite, seca será a árvore e sombria a casa que não recupere o mistério da Natividade.
Importa não esquecer a grandeza da Natividade desse Menino doce e terno, que há de ensinar com sua Vida, por suas ações: o Amor, o Perdão e a Paz, encerrando na Páscoa sua missão, onde grava o acontecimento mais histórico para os homens, uma vida que apaga a infâmia do pecado, uma vida que se inicia agora mesmo com a Natividade.
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(*) republicação de texto de 2004.
(1) “Farpas Escolhidas”, Ramalho Ortigão, Ed. Verbo, Lisboa, 1971.
(2) Isaías 7,14 e Mt. 1,23.
Olá Beto!
Obrigada pelo seu post!
Vem mesmo directo ao assunto do meu último post…
Cada vez “As Farpas” do Ramalho, são mais actuais! Isto já é Europa, meu caro, nada tem do Portugal das “botas”! Foi bom! Agora é o consumismo e os” fait divers” menos interessantes e inapropriados!
Saudades daquele Portugal, onde se dormia com a porta de casa aberta!
Impermanência do tempo!
Avec amitié
manuela
Precisávamos de um Lula…mais enérgico…mas nem assim lá vai!
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