Emily Dickinson, P. Henriques Britto e o leitor

Um poema de Emily Dickinson e duas traduções de Paulo Henriques Britto (2)

NO POST anterior, trouxemos o original do poema #185 (da coletânea de poemas de Emily Dickinson, por Johnson*) e duas traduções de Paulo Henriques Britto.

Nosso desafio ao leitor era o de escolher entre “A” e “B”.

O tradutor o fez. Saiba como, lendo antes o processo que levou Britto às duas versões citadas. As anotações estão no livro “A tradução literária”, da editora Civilização Brasileira, 1ª. ed., 2012.

Inicialmente, Britto constata que “no campo da tradução, poucos temas têm sido tão discutidos, e têm levado à adoção de posturas tão radicalmente opostas, quanto a tradução de poesia”. E por quê?
Embora o interesse teórico seja “inversamente  proporcional ao volume de traduções de poesia efetivamente publicadas”, Britto alinha algumas verdades sobre o contexto brasileiro:

i. “Num extremo, temos aqueles que defendem a absoluta impossibilidade de se traduzir poesia; no extremo oposto, temos os que afirmam que se pode traduzir poesia tal como qualquer outro tipo de texto.”
ii. Nas posições intermediárias, Britto localiza os que defendem: a)“em tese, é possível traduzir poesia, mas na prática todas as traduções poéticas são falhas; b) a poesia não pode (e não deve) ser propriamente traduzida, mas sim recriada, ou imitada, ou parafraseada, ou transpoetizada; c) é possível traduzir poesia, mas é impossível julgar a qualidade da tradução: tudo que se pode dizer a respeito da tradução de um um poema é “eu gosto” ou “eu não gosto”. O Autor assume – antes de explicar (ou apresentar) algumas dessas posições, a dele:

A meu ver, um poema é um texto literário que pode ser traduzido como qualquer outro texto literário. A diferença é que, quando se trata de um poema, em princípio toda e qualquer característica do texto – o significado das palavras, a divisão em versos, o agrupamento de versos em estrofes, o número de sílabas por verso, a distribuição de acentos em cada verso, as vogais, as consoantes, as rimas, as aliterações, a aparência visual das palavras no papel etc. – pode ser de importância crucial. Ou seja: no poema, tudo, em princípio, pode ser significativo; cabe ao tradutor determinar, para cada poema, quais são os elementos mais relevantes, que portanto devem necessariamente ser recriados na tradução, e quais são menos importantes e podem ser sacrificados – pois, como já vimos, todo ato de tradução implica perdas. Quanto a esse aspecto, a diferença entre poesia e prosa literária é apenas de grau.”

Por ser “o aspecto formal” o que caracteriza a poesia acima de tudo, assinala Britto, “os jogos de palavras, trocadilhos, duplos sentidos e demais efeitos semânticos são recursos que também ocorrem na prosa, embora sejam mais frequentes na poesia” – eis, pois, “o que há de mais específico na Poesia” –  esse aspecto formal tão fundamental provê ao leitor (e desafia o tradutor) no que um teórico (Meschonnic) traduziu numa palavra: “ritmo”. É à procura dessa essência que Paulo Henriques Britto propõe um exercício com um poema curto de Emily Dickinson – o de #185 da coletânea de Th. H. Johnson* (Dickinson: The Complete Poems, p.87).

PHBritto+EmilyPoema

Pois bem, as considerações do tradutor são muito relevantes e nos ensinam – mesmo não tendo nenhum interesse em tornar-nos tradutores – como ler mais apurada e acuradamente uma tradução. O mal-estar de ler uma tradução e não se conformar com o que apreendemos do original, às vezes são frequentes em tradutores da própria Emily Dickinson (tal foi a sensação que meu causou a maioria das traduções do Sr. José Lira e as liberdades tomadas com os poemas de ED em “Alguns Poemas”, edit. Iluminuras, para ficar em um único exemplo).

As considerações citadas estão nas páginas de 135-146 – que trarei, em breve, em outro post, no modo ‘escaneado’ por absoluta preguiça de as transcrever.

Eu vos asseguro, leitores! Vale a pena lê-las.

De tudo pesado e bem lido, fico com o Autor (Sr. Britto) com a tradução “B”, onde

Original – poem 185* Trad. “A”
“Faith” is a fine invention Quando se pode enxergar
When Gentlemen can see A “Fé” tem conveniência;
But Microscopes are prudent Mas Microscópios convêm
In an Emergency. Em caso de Emergência.

 

A versão “B”, por Paulo Henriques Britto:

Trad. “B”
A “Fé” é um ótimo invento
Quando se enxerga a contento;
Mas numa Emergência, não:
Tenha um Microscópio à mão.

Assista a um vídeo sobre a Poesia sintética de Emily Dickinson, com P.H.Britto, na ABL.

Sobre P.H. Britto – fonte: website da ABL: Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro em 1951. É tradutor e professor de tradução, literatura e criação literária da PUC-Rio. Publicou seis livros de poesia: Liturgia da matéria (1982); Mínima lírica (1989); Trovar claro(1997, Prêmio Alphonsus de Guimaraens); Macau (2003, Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira e Prêmio Alceu Amoroso Lima); Tarde (2007, Prêmio Alphonsus de Guimaraens); e Formas do nada (2012, 8º Prêmio Bravo! Bradesco Prime de Literatura, Melhor Livro).

Publicou ainda um livro de contos, Paraísos artificiais (2004, segundo lugar, Prêmio Jabuti); e três de ensaios: Eu quero é botar meu bloco na rua, de Sérgio Sampaio (2009); Claudia Roquette-Pinto (2010); e A tradução literária(Prêmio Literário Fundação Biblioteca Nacional 2013, categoria Ensaio Literário).

Traduziu cerca de 110 livros, entre os de português e os inglês. Sua tradução de A mecânica das águas, de E. L. Doctorow (1995) ganhou o Prêmio Paulo Rónai de tradução. Organizou e traduziu antologias poéticas de Wallace Stevens e Elizabeth Bishop, e traduziu também livros de poesia de Byron, Allen Ginsberg e Ted Hughes. Entre as traduções de ficção mais importantes dos últimos anos destacam-se Contra o dia, de Thomas Pynchon, e Grandes esperanças, de Charles Dickens, ambos de 2012.

Veja esse vídeo da TvSenado com o Paulo Henriques Britto.

Obs.: por último, mas não menos importante: sou um dickinsoniano desde a minha 1a. viagem aos States, há umas décadas atrás. Depois que descobri o volume de traduções e comentários de dona Aíla de Oliveira Gomes (E.Dickinson: Uma centena de poemas, da T.A. Queiroz editora) nunca mais deixei de lê-la com regularidade quase religiosa. E postar poemas escritos e falados.

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Fontes: BRITTO, Paulo Henriques. “A tradução literária”, Civilização Brasilieira, Rio de Janeiro, 2012, 157 pág.
(*) O poema citado é o de n◦. 185 cf. a edição de Thomas H. Johnson (Emily Dickinson: The Complete poems, p.184 – edição digital).

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Gil Vicente & Ivo Barroso

Do poeta-tradutor IVO BARROSO, sempre podemos esperar inovação e talento – que lhe é nato. Neste post, Ivo nos alerta sobre a atualização que fez ao texto de Gil Vicente, voltado ao leitor brasileiro de nossos dias:
*****”Cuidou-se ainda de evitar o tratamento vós, hoje praticamente à margem da língua falada e escrita no Brasil, substituindo-o por tu e às vezes mesmo por você. Essa variedade se encontra no próprio texto vicentino, em que, na estrofe 7, se diz:

“Embarca, ou embarcai”, deixando claro que o Diabo hesita em dar ao Fidalgo um tratamento (pelo menos lingüístico) superior.”

– Já o leitor recebe, sempre, por certo o melhor tratamento por parte do meticuloso tradutor, que ressalta: “Nosso intuito — ao fazer uma tradução interlingual deste Auto de Gil Vicente — foi apresentar ao leitor brasileiro uma réplica do texto vicentino como se redigido hoje em linguagem corrente do Brasil. Além disso, pensando em sua representação teatral, buscamos utilizar um vocabulário de imediata compreensão auditiva, sem quaisquer palavras que requeressem do ouvinte uma consulta ao dicionário. Contudo, foi necessário mantermos alguns vocábulos específicos, como termos jurídicos e de marinharia, cujo sentido vem esclarecido em notas oportunamente dispostas.”

“Com a preocupação maior de que este novo texto contivesse apenas palavras de utilização atual e de conhecimento amplo, tivemos, em muitas ocasiões, de sacrificar expressões lídimas da língua portuguesa, mas ausentes de nosso vocabulário hodierno.”(I.B.)

Gaveta do Ivo

AUTO DA BARCA DO INFERNO – GIL VICENTE 

Monumento a Gil Vicente Monumento a Gil Vicente

A Editora SESI-SP entrega este mês aos seus leitores o livro AUTO DA BARCA DO INFERNO, obra de estudo obrigatório nos cursos universitários de língua portuguesa. Escrito em 1517 pelo grande poeta clássico e dramaturgo português Gil Vicente (c. 1465-c.1536), o texto é um apólogo em versos de sete sílabas fartamente rimados visando à edificação moral dos leitores (ou ouvintes). Num porto inespecífico estão ancoradas duas barcas que se destinam a transportar os mortos em sua viagem final para o além. A barca mais enfeitada é a do Inferno e seu comandante, o Diabo; a mais singela, a do Paraíso, está sob a guarda de um Anjo à proa. Vários personagens (um fidalgo, um agiota, um simplório, um sapateiro, um frade, uma alcoviteira, um judeu, um corregedor, um procurador, um enforcado e quatro cavaleiros cristãos), que acabaram de…

Ver o post original 1.052 mais palavras

Da série “No mínimo um poema ao dia” (7)

Duas traduções de um clássico norte-americano – Robert FROST (1874-1963).

RobertFrostMontagem.png

Robert Frost (1874-1963) – montagem com a capa e última página do livro de Louis Untermeyer (St. Martin’s Griffin, NY, 1971) com seleção de poemas e comentários de L.U. (ilustr. J. O’Hara Cosgrave II) ; foto de evento na velhice do poeta…“A diferença que a poesia poderia ter feito – este o único caminho possível para o fazendeiro falido que vem a ser 0 poeta amado da América…”

 

 

 

The Road Not Taken – a primeira tradução é de José Alberto Oliveira, do blog Vício da Poesia (link).  e a segunda, de Renato Sutanna.

 

A estrada que não foi seguida

Duas estradas separavam-se num bosque amarelo,
Que pena não poder seguir por ambas
Numa só viagem: muito tempo fiquei
Mirando uma até onde enxergava,
Quando se perdia entre os arbustos;

Depois tomei a outra, igualmente bela
E que teria talvez maior apelo,
Pois era relvada e fora de uso;
Embora na verdade, o trânsito
As tivesse gasto quase o mesmo,

E nessa manhã nas duas houvesse
Folhas que os passos não enegreceram.

Oh, reservei a primeira para outro dia!
Mas sabia como caminhos sucedem a caminhos
E duvidava se alguma vez lá voltaria.

É com um suspiro que agora conto isto,
Tanto, tanto tempo já passado:
Duas estradas separavam-se num bosque e eu —
Eu segui pela menos viajada
E isso fez a diferença toda

Tradução do poeta José Alberto Oliveira, in Rosa do Mundo, 2001 poemas para o futuro.

./.

2a.) Tradução do poema de R. Frost – A ESTRADA NÃO TRILHADA – por RENATO SUTANNA.

Robert Frost_PoetsOrg

“Frost: a única estrada que podia ter trilhado era diferente – foi a estrada da Poesia” (Louis Untermeyer)

Num bosque, em pleno outono, a estrada bifurcou-se,
mas, sendo um só, só um caminho eu tomaria.
Assim, por longo tempo eu ali me detive,
um deles observei até um longe declive
no qual, dobrando, desaparecia…

Porém tomei o outro, igualmente viável,
e tendo mesmo um atrativo especial,
pois mais ramos possuía e talvez mais capim,
embora, quanto a isso, o caminhar, no fim,
os tivesse marcado por igual.

E ambos, nessa manhã, jaziam recobertos
de folhas que nenhum pisar enegrecera.
O primeiro deixei, oh, para um outro dia!
E, intuindo que um caminho outro caminho gera,
duvidei se algum dia eu voltaria.

Isto eu hei de contar mais tarde, num suspiro,
nalgum tempo ou lugar desta jornada extensa:
a estrada divergiu naquele bosque – e eu
segui pela que mais ínvia me pareceu,
e foi o que fez toda a diferença.

./.

Conheça, neste link – o poema original The Road Not Taken (ROBERT FROST), transcrito e falado pelo Autor.

LEIA MAIS (em inglês) Robert Frost.