Estavas aqui há pouco e brincávamos de caça-palavras.
Estavas aqui e, há pouco ainda, via tuas mãos alvíssimas.
Sim, eu estava ao teu lado de torso nu, colhendo conchas na praia.
Era como se só me interessassem as conchas e pedrinhas perfeitas.
Cioso as escolhia, sob seu olhar terno, e as guardava no embornal que eu trazia ao ombro.
Estavas aqui há pouco e eu comia doce de leite e toda a mais funda lembrança da infância no mais fundo dos Brasis ainda vivendo em paz.
Ah, e tomava leite de cabra e nadava no riacho e a tudo assistias.
E tudo era como se eu me arrumasse para ir à escola, a escola mais distante no mais distante pasto a se atravessar. E nem medo nenhum eu tinha de vaca doida e boi da cara-preta…
Estavas aqui há pouco e não havia mistério nas matemáticas que não decifrássemos num átimo.
Estavas aqui há pouco. Entre as palavras me divertia: jade, rocio, tez, altar, pistilo, éter, riacho, sanga, jã-de-louçã, jaez, adestro, terrina, absoluto, devido, lápis lazuli…
E lembrei-me do amigo, o caçador de palíndromos.
Dentre mil imagens, a da catedral agora visível, donde provêem sons de um órgão que jamais ouvi. E uma cornucópia de frutas e moedas que valiam o ouro de pensamentos mais cristalinos.
Estavas aqui há pouco e o mais ditoso era falar em línguas.
Eu dizia sem entender: eudamonía, tu dizias: makaría, makariótes…makarízein.
E eu: mákar o que é?
– Tu respondias: beatitude.Bem-aventurança e lias o evangelho de Mateus e eu me sentia heureux qui comme Ulisse…
Tu dizias: felix, venturus, felicitas. Eu solfejava de mansinho, lembrando-me da melodia:
– “Beatus, beatus, beatus vir…”
Tu dizias em resposta: ventura, ventura.
Essa palavra à liberdade atada: “Tu mesmo forjaste tua ventura”, repetias, cantando a admirável palavra cervantina”.
– Ventura, venturoso, venturança, o bom amigo e o Sancho Pança…
Eu dizia e sorria…
Tu nomeavas, eu repetia: felicità é ventura, é bonheur.
– Ah, essa eu já a conhecia, dizia todo feliz. E lembrava-me de todas as manhãs de quando o orvalho luzia sobre o cerrado goyano (o capim meloso) ou sobre o campo de alfazema, en Provence. E entanto Glück é novo pra mim, eu repetia:
– Ah, happiness e também luck, a “sorte” grande (só pode ser boa) e não é loteria. Há Glück, tu dizias e há também Seligkeit, ou uma conjunção dessas duas: Glückseligkeit (eu me atropelava, mas repetia; e lograva entender: Glück-Selig-Keit, que era pra mim um latino aprendendo a língua de Goethe e Silesius e Schiller).
Oh, Princesa de todas as princesas; oh, Mãe de todas as mães, tu estavas aqui…
Agora, no albor da alvorada, ao me deixares, fiquei com a surpresa e a ventura de mais um dia que recebo de presente.
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(*) Este texto foi inspirado na leitura do livro de Julián Marías, “A Felicidade Humana“, Livraria Duas Cidades, 1989.