V.S.NAIPAUL
“Jamais me ocorreu que escrever este livro poderia vir a ser um fim em si, que o ato de registrar uma vida poderia se tornar uma extensão daquela vida. Jamais me ocorreu que eu pudesse vir a gostar da vida metódica e regulamentada do hotel, que antes me levava ao desespero, e que o contraste entre a imutabilidade de meu quarto e a lenta construção do que lá estava sendo criado me daria tamanha satisfação. Ordem, sequência, regularidade: é o que sinto cada vez que o medidor do aquecedor estala, aceitando mais uma de minhas moedas. Em quatorze meses, o aquecedor ja engoliu centenas de xelins, ora com um som oco, ora com um som mais cheio. (…)
“Conheço cada linha do trecho do papel parede acima da escrivaninha. Não percebi nenhum sinal de deterioração, mas fala-se em redcorar o hotel. E a escrivaninha: quando sentei-me à sua frente pela primeira vez, achei-a tosca e estreita. O tampo escuro estava manchado e arranhado, o arranhões estavam cheios de terra e sujeira, a gaveta estava emperrada, os pés tinham sido serrados. Não fazia parte do mobiliário padronizado do hotel. Fora-me fornecida em atenção a um pedido especial. Era um móvel de segunda mão, que não pertencia a ninguém. Agora ela me parece reabilitada e limpa: é um objeto cotidiano e confortável e até mesmo os arranhões adquiriram um certo brilho. Isto se deu graças ao dom da observação minunciosa, que adquiri ao escrever este livro; uma ordem, da qual faço parte, vem corresponder a outra, que é criada por mim. E com este dom veio também outro, o que eu menos esperava: uma capacidade de gozar constantemente, calmamente a passagem do tempo.”
(Os mímicos, p.310, trad. Paulo Henriques Britto).
Transcrevendo este trecho do romance que acabo de ler, primeiro num caderno e agora num editor de texto, sigo um conselho do professor Rodrigo Gurgel, na oficina de Escrita Criativa 2016.
Penso no trabalho braçal que levou V.S. Naipaul a construir o romance, elaborar cuidadosamente os planos em que se desenrolam as aventuras e desventuras de um personagem em prosa não linear. Foram esforços de um talentoso e disciplinado escritor trabalhando entre agosto de 1964 a julho de 1966. Somente isso já exigiria do leitor uma atenção cuidadosa sobre essa tenacidade.
A observação atenta do que lê para aprender é sistemática e continuamente provocada a ser uma espécie de comunhão entre leitor-escritor. O que espreita, o que vigia, o que presencia – eis o leitor atento. Ao que descreve cabe manter-nos agarrados ao fio da conversação imaginária.
A imaginação, tida como “a doida da casa” por Santa Teresa D’Ávila pode por vezes ser o fio condutor de uma remissão. Trata-se de “gozar calmamente a passagem do tempo” para um e outro. Mas não haverá comunhão se não houver verdade no texto. Se não encontro na escrita algo “além do transitório, do momentâneo”, se ali não houver uma “sintaxe” própria, se o Autor falseia e escorrega para o rés-do-chão, transforma-se no prisioneiro do corriqueiro. O que não inventa, não surpreende – e para isso não são necessários muitos malabarismos! – não retém, não serve ao Leitor a ceia (seiva) da história que teria a contar.
Ao contrário, o que une elementos únicos como se fossem a própria vida; esse convence e retém o Leitor, numa teia de encantamento capaz de criar uma “conspiração afetiva”.
Forçoso dizer que todo livro tem seu propósito, quando bem realizado. Não me cabe dizer agora, no calor da 1a. leitura recém-finda que “mensagem” é essa que vem de “Os Mímicos”. Nem seja este, talvez, o caso. Bastou-me manter os olhos bem abertos, “a mente atenta não apenas para se divertir, mas para aprender com o Outro” – como sugere o professor Gurgel.
E se é certo que “Não basta imaginação!”. A doida da casa há de servir-nos, leitores exigentes mais do que um entretenimento e um passar do tempo. “Viver e escrever precisam transformar-se em uma coisa única”. Primeiro, isso ocorre com (e dentro) do escritor; mas não menos importante, secundariamente no (dentro) do Leitor. Há, dessa forma, uma espécie de “uma conspiração afetiva entre escritor e leitor“.
De “um sacerdote da imaginação” (Paul Mariani) espera-se sempre o respeito pelo altar do livro.
E assim Naipaul arremata o assunto:
“O ato de escrever este livro é mais do que uma forma de me libertar daqueles artigos [feitos ao correr da pena, profundamente desonestos …que se esquivavam da verdade final até perdê-la]; é uma tentativa de redescobrir aquela verdade final.”
E assim se deu comigo, leitor, na leitura atenta (não menos emocionada) de “Os Mímicos”, de V.S.Naipaul, traduzido por Paulo Henriques Brito.
♣./.