Na Aliança Francesa de Goiânia, há 20 anos atrás o incentivo à leitura e ao debate de bons escritores franceses era animado pelo nosso melhor diretor Pedagógico na história de nossa Alliance local – Monsieur Serge Evreinhoff.
Embora Le Clézio não tenha feito parte do curriculum oficial, foi motivado pelo diretor (e amigo) – a quem ajudei como conselheiro da AF -, bem como pelo “professor-Leitor” da UFG, Monsieur Souchon que cheguei a adquirir esses dois livrinhos da foto e muitos outros em minhas primeiras viagens à França.
Le Procès-Verbal et Le chercheur d’or (este último mal traduzido para A busca do ouro) passaram a fazer parte de minha biblioteca e de minhas fracas memórias de leitor (nem tão atento) desde 1988.
Agora que o romancista francês arrebatou o prêmio Nobel, faço essa releitura despretensiosa e como tudo nesse blog, vou na contra-corrente dos acontecimentos e sim enfatizando minhas escolhas. (E aqui cabe uma confissão: como não sou ‘ligado’ na poética de enredo, confesso a meus 3 leitores que não me lembrava de nada… Mas como 88 ainda era tempo em que eu sublinhava trechos, só me ocorria durante a releitura, pensar: meu Deus, por que sublinhei isso? Mais admirei Carpeaux ao final da releitura!)
De “Le Procès-Verbal” posso dizer que é, guardada as enormes diferenças de enredo, o filho de uma incompreensão enorme do leitor assim como anos depois tive com “La Joie” de Georges Bernanos. São esses romances do tipo que, diante dos quais o leitor comum se sente, ao final da leitura, pensando em como juntar os pedaços como num puzzle para compreender a exata mensagem do romancista comunicador ou, até mesmo, se há uma mensagem real desse ‘comunicador’.
No caso de Le Clézio esse livro vem mesmo com a mensagem antecipada do então jovem autor (23 anos na época) de que realmente queria mesmo “derrubar as muralhas da indiferença do público“, acreditando que “escrever e comunicar é ser capaz de fazer alguém crer em não importa que assunto“. Le Clézio escolhe como primeiro passo um aliado diferente – o personagem Adam Pollo, personificação do primeiro Adão que no resumo do próprio Le Clézio: “a história de um homem que não sabia ao certo se saíra do exército ou de um asilo psiquiátrico”. E assim começa a história dessa confusa jornada:
« Il y avait une petite fois, pendant la canicule, um type qui était assis devant une fenêtre ouverte ; c’était un garçon démesuré, un peu voûté, et il s’appelait Adam ; Adam Pollo. Il avait l’air d’un mendiant, à rechercher partout les taches de soleil, à se tenir assis pendant des heures, bougeant à peine, dans les coins de murs. »
Podemos afirmar que as citadas “muralhas da indiferença” não esperaram tanto a cair, permitindo o acesso de J.G-M Le Clézio ao respeitável (e respeitado) universo romanesco francês. Desde o primeiro romance foi bem aceito pela crítica (recebe o Prix Renaudot em 1963, pelo seu primeiro romance; em 1980, o Grand prix Paul-Morand de l’Académie Française, por “Le Desert”) e continua escrevendo (e sendo lido em todos o mundo) com regularidade há 40 anos.
O problema de “Le Procès–Verbal” é o da compreensão desse discurso romanesco, enredado em artimanhas e recursos de composição (próximos do Nouveau Roman), tarefa que Ricard Ripoll Villanueva (em colóquio na Universidad de Valencia, coordenado por Elena Real e Dolores Jiménez) designou como compreender as “estratégias do enigma”.
O próprio autor já havia alertado no prefácio que estava à cata da “fiction totale”, um gênero próximo do amante da literatura policial que ele gostaria de intitular “Roman-Jeu” ou “Roman-Puzzle”. O fato é que no meio dessa teorização toda parece meio pretensioso que um autor de 23 anos invente algo novo no mundo sofisticado do romance francês com o peso dos Balzac e dos Stendhal, mas ele o faz mesmo assim, pedindo desculpa: “Je m´excuse d´avoir accumulé ainsi quelques théories; c’est une prétension um peu trop à la mode de nos jours”.
E para entender o problema deste inquérito conduzido em torno de Adam Pollo – personagem e falso narrador (numa obra em que a alternância do próprio autor e do personagem geram discursos dúbios que confundem narrador-leitor-narração-autor). E ao fim e ao cabo da leitura dão-nos a sensação de que Villanueva está certo quando afirma:
« écrire l´énigme c´est, avant tout, rechercher la confusion; c´est aussi provoquer un décryptage qui va s´étendre peu à peu à toute la géographie du texte. Tou devient signe. L´énigme renvoie au jeu, à un jeu qui place l´Homme face à son destin. »
É preciso dizer que a confusão começa pelo fato de o jovem estreante no romance ter optado por não numerar os capítulos de seu romance de estréia, atribuindo letras a cada capítulo. Há 18 capítulos – de A a P, depois um ´capítulo vazio` (Q) e no final o capítulo R. O cap. Q conta como vazio/presente, na acepção de Villanueva que completa: “se aceitamos a possibilidade, constataremos que há 9 letras não expressas – STUVWXYZ e o Q. O capítulo ausente (Q) evoca, segundo o crítico, o número 9. Olhando para um quadro de correspondência de letras e números, pode-se concluir que a letra Q corresponde ao número 8 (17a. letra do alfabeto: 1+7=8)”.
Ora, conclui: “o que o livro quer nos dizer é que o 8 representa a Morte“.
“On lui avait coupé les cheveux et rasé la barbe, et sa tête à noveau très jeune, était tournée vers le rectangle monochrome de la fenêtre: Adam avait déjà trouvé le moyen de choisir un des compartiments formé par l’interesection des barreaux; para mauvais goût, ou par hasard, il avait choisi le hitième à partir de la gauche. En tout cas, que le choix fût délibéré ou non, Adam savait bien que, d’aprés Manilius, la Huitième Maison du Ciel est celle de la Mort.” (p.256).
A referência bíblica é constante no fim do romance, como acentua Villanueva. Adam Pollo, ele próprio, se descreve diante do interrogatório final – típico de um inquérito do título do romance) como:
“Je suis comme ce type de la Bible, vous savez, Giézi, le serviteur d´Elisée : on avait dit à Naaman de se baigner sept fois dans le Jourdain, ou quelque chose comme ça. Pour se guérir de la lèpre. Une fois guéri, il avait envoyée um présent à Élisée mais Giézi avait tout gardé pour lui. Alors, pour le punir, Dieu lui avait donné lèpre de Naaman. Vous compronez? Giézi, c’est moi. J’ai attapré la lépre de Naaman.” (p.292).
O prenome do personagem (Adão) nos remete ao texto sagrado e o personagem central se refere aos santos da Igreja e ao misticismo (referências explícitas a Santo Antonio e o Cura D’Ars, a a Occam) – o que, segundo a análise de Villanueva, não é gratuito pois, se julgarmos pelos números da geração, de Adão a Noé contam-se 9 gerações; de Noé a Abraão, outras nove. Adão teve 3 filhos: Caim, Abel e Seth. Noé, por sua vez, outros 3: Sem, Cam e Jafet. Todos esses homens representam o desenvolvimento da consciência humana, que, segundo a Bíblia, se dá em 18 ciclos (há também 18 capítulos em Le Procès-Verbal!).
O fato é que a confusão mental desse novo Adão que não demonstra crença em Deus, que se isola da família e do convívio social, se contentando com um apelo à sexualidade como fuga (sua ligação com a personagem feminina Michèle, usada, agredida, presente apesar de tudo em boa parte da vida de Adam e, depois, ausente, só retornando na ‘colagem de jornais’ entre os capítulos P e R…) mostra-nos um mundo de confusão mental e de abandono dos que não têm esperança. De outra natureza é o difícil entendimento do romance do romance (católico?) de outro francês (G. Bernanos), La Joie, que pretendo investigar em outro post.
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Fonte: Le Clézio, J.M.G. “Le Procés-Verbal“, Paris, Gallimard, 1963.
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