Uma arte profética (ou: como ler Dostoiévski-1)

Como os leitores de Dostoiévski neste século XXI podem ler sua obra tentando bem compreendê-la? Primeiro, lendo Dostoiévski lentamente, sem a preocupação de estar diante (quase sempre) de romances longos. Segundo, sugiro recorrer aos recursos de interpretação de um crítico atual – o francês René Girard, de quem um bom começo poderia ser “Dostoiévski: do duplo à unidade” 
Um apocalipse pessoal explicado por Girard. Eis a vida do escritor russo Fiodor Dostoiévski.
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Queres ler o quê? (VIII)

DOSTOIÉVSKI (1)
Existem poucos escritores cuja obra tenha sido tão tenazmente mal compreendida como a de Dostoiévski. Dostoiévski é, se não o maior, decerto o mais poderoso escritor do século XIX; ou do século XX, pois a sua obra constitui o marco entre dois séculos da literatura. Literariamente, tudo o que é pré-dostoievskiano é  pré-histórico; ninguém escapa à sua influência subjugadora, nem sequer os mais contrários. Parece, porém, que toda a Europa tenta resistir-lhe, instintivamente e obstinadamente; e como esse bárbaro barbado, com a face sulcada de sofrimentos, parece irresistível, os europeus entrincheiram-se, ao menos, num baluarte de interpretações erradas.

O texto acima abre o artigo “Ensaios de interpretação dostoievskiana” em “A cinza do purgatório”, do crítico austro-brasileiro Otto Maria Carpeaux. A análise do pensamento político do escritor russo, feita por Carpeaux dá conta do que o analista chama de “interpretações erradas” diante da rica produção deste “bárbaro barbado“, pois que a Europa fixa-se no pan-eslavismo do autor que seria “um escritor político” – e, acentua o crítico austro-brasileiro: “e o é apaixonadamente”.

Para Dostoiévski político – e isso aparece não só nas “Recordações da casa dos mortos” mas, principalmente, nos “Irmãos Karamazov” trata-se de afirmar a decadência do Ocidente, a apostasia da Igreja Católica Apostólica Romana, “pregando o domínio universal dos eslavos ortodoxos”.

É irritante, constata Carpeaux, que para aprovar o escritor, tenha o leitor europeu ou ocidental (nós, brazucas, aí incluídos) que “aceitar as convicções políticas“. Não. É o que prova o belo ensaio. Podemos, adotando uma postura de C.S. Lewis, na polêmica católicos romanos versus anglicanos, falar apenas daquilo que nos une.

Se olharmos para o escritor que “fixa – com segurança, as paisagens da alma“, esse passo fica mais fácil de ser dado. Este é passo decisivo para encontrarmos o “terreno comum” entre o leitor católico romano (ou o protestante, anglicano etc) e o ortodoxo Dostoiévski, assegura Carpeaux. Para isso, é mister esquecermos o Dostoiévski que, apesar de irritar-se com a revolução política (e o advento do socialismo na Rússia), “luta pela revolução social” (similarmente ao outro grande russo Tólstoi).

O campo comum é que no fim e ao cabo, “Dostoiévski é cristão. Nós também”. Esse, no entanto, não seria ainda – para Otto Maria Carpeaux – o “campo de encontro“, porque “Dostoiévski nos recusa o direito de nos chamarmos cristãos”.  Para o escritor russo, estão lado-a-lado em “O grande inquisidor” o padre romano e o operário londrino, o burguês parisiense e o professor de Heidelberg – acentua Carpeaux.

Na censura dostoievskiana à Igreja romana, coube ao cônego e teólogo católico alemão Paul Simon a melhor defesa, ensina-nos Carpeaux: quando Dostoiévski acusa a Igreja Romana de não ser a igreja de Deus mas unicamente a igreja dos homens, cai numa especia de “… censura [que] é arquivelha; ela foi destruída e volta sempre, cada vez mais violenta. Isto – diz o cônego – deve ter uma causa profunda; e – continua – se nisto não há verdade, deve haver uma “possibilidade”. “A Igreja romana não é espiritualista” – como deseja o ortodoxo Dostoiévski, “ela é a Igreja de Deus e a igreja dos homens, ao mesmo tempo. Ela é, até, profundamente humana; daí vem a eterna “possibilidade” de “humanizar-se”… ou para lembrar o título já clássico de Jacques Maritain, é o “espaço” que une “a Pessoa da Igreja a seu Pessoal” – com suas misérias e sua Graça infundida.

Esse “humanizar-se” de que nos fala o cônego Paul Simon é estendido e entendido por Carpeaux como uma possibilidade de “humanizar-se mesmo demasiadamente, razão por que no dizer de Rosmini, “as cinco chagas do corpo humano do Cristo não cessam de sangrar sobre o corpo da sua Igreja” – numa paráfrase às Cinco chagas da Santa Igreja…

Mas é justamente por isso, assevera Carpeaux, que a Igreja deve ser a rocha de nossa condição humana, a advogada da humanidade perante o trono de Deus.” 

E a coda do ensaio não podia ter senão a mesma beleza humana (e crítica) dos melhores textos do católico Otto Maria Carpeaux: “A Europa deixou, há muito tempo, de ser cristã. Porém, enquanto viver, continuará humanista. A Rússia nunca foi humanista, mas continuou, assim mesmo, cristã, até ao risco de deixar de ser humana. A morte temporal ou espiritual, nos espreita, cá e lá. Aqui, o humanismo descristianizado, petrificado na letra morta da filologia ou endurecido no disfarce de um neocatolicismo neopagão. Lá, o cristianismo desumanizado, petrificado pelo dogma da Igreja sectária ou endurecido pela dissimulação do evangelho socialista [presentemente quase inteiramente superado, digo eu, em 2017!] – Mais claramente: esses perigos já não nos espreitam, eles nos devoram. Cumpre recomeçar. Cumpre recristianizar o mundo e a fé, por um esforço de síntese, por um “humanismo cristão”, que lance uma ponte sobre o abismo.”

dostoievski

Sabendo assim o que nos separa daquilo que nos une ao “barbado bárbaro” Fiodor M. Dostoiévski”, Carpeaux nos recomenda transigir diante da “face barbada, sulcada pelos sofrimentos. O que nos une é o Cristo; et tout le reste est littérature. (1)

Assim procedendo, Dostoiévski continuará atual e desafiador ao humanista cristão que o lê sem ser o intransigente leitor católico romano pronto a desafiá-lo a um duelo imaginário.

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Fonte: Otto Maria Carpeaux, “A cinza do purgatório“, Livraria Editora Danúbio, 2015, p.161/169. (1) em francês, no original: e o resto é literatura.

Livros 2016

Uma pequena e valiosa lista no painel dos leitores do Opção Cultural.livros-do-ano-2016_opcao

São sete livros apenas, comentados em no máximo 10 linhas, revelando que nem sempre o lançamento do ano em curso é o que atrai o leitor seletivo. Se me incluo aí na lista, comentando um belo livro lançado em 2016, não o faço como auto-elogio, mas cumprindo a obrigação de agregador e incentivador da arte de ler.

Esperamos motivar mais leitores inteligentes a fazer parte da lista 2017… Infelizmente, lê-se pouco hoje; lê-se menos e de forma apressada; substitui-se a leitura pelas séries de TV, pela leitura de fofocas e noticiário via web. Perdem com esses novos hábitos a literatura e o leitor (potencial) que se deixa atrair pelos modismos.

Insisto em ler e em aperfeiçoar o hábito da leitura. Delego à tv aberta – próximo a 0,01% do meu tempo; séries e tv fechadas – só depois de muita escolha! Netflix, muito pouco; YouTube, educativo e óperas, algum riso…; samba, música erudita e francesa para acompanhar o dia-a-dia; não perco tempo com futilidades.

Há quase 3 anos aboli o futebol semanal na tv – reservo-me para as finais de campeonatos. É muito ainda. Conclusão: obtive um aumento significativo no índice de páginas lidas e na qualidade da absorção dos livros lidos.

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Fig. 1 – Lista de leituras 1976.

Aprendi com o professor Rodrigo Gurgel que a leitura atenta pode ser um passo em direção à boa interpretação e à própria escrita. A lição tirada de Antoine Albalat pode ser desdobrada para o melhor deleite daquele que lê.
Vem de São Gregório Magno a dica fundamental para o leitor atento:

A escritura cresce com quem a lê” – recorda-nos o professor Gurgel que acentua: “O leitor complementa a leitura” – embora seja uma visão católica, reproduz-se em Marcel Proust, por exemplo, para quem “todo leitor, quando lê, é leitor de si mesmo!”. Ou, em J.L. Borges, para quem “a literatura cresce com quem a lê.”

Ao longo da minha vida, sempre fechei o ano com a minha lista pessoal de livros lidos – para ter uma memória de tudo o que havia conseguido realizar no plano literário (o que desejara ler no início daquele período e, secretamente, para que me preparasse para escrever melhor!).

Há listas antigas e guardadas em meus cadernos que são inseparáveis, mesmo depois de tantas mudanças de casas e de situações existenciais…Essa que ilustra a página, feita num caderninho artesanal montado por minha mulher, é de 1976 (fig.1).

No extraordinário “Crítica, Literatura e Narratofobia” (2015), Rodrigo Gurgel abre o volume com o artigo “Em busca do livro primordial” – com que me identifiquei visceralmente. Confiram parte deste texto:

RECORDAR NOSSO PASSADO não pode ser um exercício de idealização. O diálogo com o  “eu”que nos observa e, ao mesmo tempo, envolto na neblina do tempo, nos dá as costas e caminha de volta à infância, precisa estar impregnado daquela tensão que ressurge sempre que nos debruçamos sobre o poço da verdade.
É o homem de carne e osso que busco quando olho sobre meus ombros na direção da juventude, da infância. Mas não se trata de revisitar um horizonte ensolarado. Trata-se, ao contrário, de repetir as caminhadas de Miguel de Unamuno pelo claustro do Monastério de Santo Estevão, em Salamanca, debruçar-se sobre o poço, no Pátio das Cisternas, e gritar: “Eu…eu…eu!”, para que o eco do passado, ao repetir o pronome, reafirme minha existência.
Um de meus sonhos recorrentes está impregnado desse “eu” sempre à minha espera, em algum ponto do emaranhado de reminiscências.
No sonho, estou na entrada do porão da casa de minha bisavó paterna. A cena começa exatamente ali, repetindo os gestos que cansei de fazer durante a infância:  retiro a chave pendurada no batente, num prego, coloco-a na fechadura, e, com um único giro, a porta se abre. Sinto, imediatamente, o cheiro adocicado de BHC, um odor úmido, e o ar pegajoso que vem do ambiente escuro.
O segundo movimento é localizar, na parede à esquerda, entre a estante e o batente, o interruptor. A seguir, entrar. A lâmpada, fraca, mal ilumina as porcelanas e os vidros nas prateleiras, além dos caixotes empilhados e recobertos de pó.No entanto, o que procuro não está ali, mas no cômodo ao lado, que permanece escuro.
Não sinto calor  ou frio, apenas uma expectativa controlável, pois estou certo de que ele se esconde no quarto vizinho, sob a escuridão.Então, penetro naquele lugar ainda mais úmido, e é difícil descobrir o interruptor, que não passa de uma delicada corrente presa à lâmpada, no centro do cômodo. A mão cega apalpa a escuridão. Por um segundo, a ansiedade transforma-se numa espécie de medo, talvez o receio de que minha busca — e o encontro certo — não se concretizem, somente pelo fato de eu não conseguir acender a luz. Mas encontro a correntinha e puxo-a — e imediatamente vejo os caixotes de livros no chão.
Sei o que venho buscar: o livro superior a todos os livros, um manual completo sobre a existência e, ao mesmo tempo, o guia para a difícil, emaranhada tarefa de viver. Tenho certeza de que está ali, aguardando-me. Não uma obra mágica, mas apenas o conjunto de páginas recoberto por duas capas envelhecidas, no qual se esconde a síntese da experiência humana.
Vasculho os caixotes lentamente, retirando os livros, um a um.
(…)
E então, do fundo de um caixote de madeira, sob a pilha de livros inúteis, retiro aquele que me revelará o segredo de viver. Nem pesado nem leve, segurá-lo guarda o mesmo prazer que sinto, ao encontrar em um sebo, a obra há vários anos desejada.
(…)
O sonho é impressionante por vários motivos, mas deixo aos psicanalistas a tarefa de compor, mais que a análise, suas ficções.
O que me interessa é reencontrar esse objeto que se tornou uma das poucas constâncias em minha vida. Há, claro, um conjunto de fatos, de circunstâncias que formam uma personalidade, mas, no meu caso, os livros têm papel primordial.
Às camadas do meu ser correspondem livros. Nasci e fui educado entre três bibliotecas: a de meu pai, composta, basicamente, de obras de filosofia e da área jurídica, mas onde descobri as sisudas capas negras do Tesouro da Juventude — com a velha ortografia, em que eu podia saborear a beleza excêntrica de palavras como ophthalmologia, columna e aucthor — e o Lello Universal; a de miha avó, pequeníssima, mas com livros indispensáveis, como As mil e uma noites e Madame Bovary; a a do Gabinete de Leitura Ruy Barbosa.
Cada uma me ofereceu o que tinha de melhor, mas a do Gabinete fez o principal, pois a bibliotecária da noite, dona Odete, deixava que eu transpusesse o balcão de madeira escura e, penetrando no acervo, percorresse as estantes livremente. Ali, então, descobri o mundo.
Mas o que forma um leitor é, antes de tudo, o exemplo de outros leitores…(…)
Se o tempo me fez mais seletivo, se a ânsia adolescente de ter todos os livros foi substituída por uma serenidade que diminuiu o número de compras mas não tornou possível ler tudo o que desejo, isso não muda o anseio das visões oníricas, de que, algum dia, aquele menino que penetra no porão me permita ler ao menos o título, talvez a primeira linha do livro que sintetiza a vida”*

E Gurgel segue registrando sua gratidão ao exemplo de leitores eminentes para a sua (dele) formação como leitor e crítico — seu pai, por primeiro; as professoras de Teoria Literária e de Língua Portuguesa; professores do colégio que o iniciaram no que, comparado à capacitação de hoje fê-lo pensar que cumpriu, antes de tudo, um mestrado. Nelson Foot, professor autodidata, é lembrado com carinho por Gurgel, quando já aposentado, o ensinava a entender um poema de Cecília Meireles e o traduzia para o romeno, depois para o latim, a seguir para o francês, finalmente para o inglês…“Gosto de imaginá-lo brincando com os textos como se fossem animais de estimação.” 

E assim, de maneira quase afetiva, Rodrigo Gurgel nos apresenta seu mundo de livros, para só então listar “Dez livros que mudaram minha vida” (p.37/40). A lista fica aqui, mas a recomendação aos meus seis leitores deste blog é que procurem conhecer os argumentos que fundamentam o livro por inteiro.

A lista de RODRIGO GURGEL – Dez livros que mudaram minha vida

  1. Os Sertões, de Euclides da Cunha.

  2. Livros do poeta inglês John Keats — notadamente “Endymion” e seu marcante verso “A thing of beauty is a joy for ever…” que o remete a seu estimado professor Flávio Vespasiano Di Giorgio.

  3. “Claro Enigma” (referência também de Di Giorgio) de Carlos Drummond de Andrade.

  4. “A Morte de Virgílio”, Hermann Broch, principalmente o magistral início: “a solidão do mar, ensolarada e todavia prenunciadora de morte…

  5. “Lorde Jim de Joseph Conrad e …

  6. “A fera na selva” — Henry James porque (Conrad e James) eles “mostraram-me que a grande batalha encontra-se no centro do nosso coração — essa é a única história sempre recontada” (Gurgel).

  7. “Raízes da criação literária” (Edmund Wilson).

  8. “A orgia perpétua” (Mario Vargas Llosa).

  9. “O imbecil coletivo” e tantos outros artigos de Olavo de Carvalho.

  10. Livros de Isaiah Berlin — através dos quais o autor diz ver-se “livre do coscorão esquerdista“.

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Post-post: O hábito das listas persegue a humanidade há muito tempo…* é o que prova Shaun Usher com suas 125 “listas extraordinárias” encontradas pelo pesquisador inglês nos muitos arquivos vasculhados por ele quando reunia material para o livro “Cartas extraordinárias“. Agora, Usher aproveitou este material criando “Listas Extraordinárias“. capa-livro-listas-extraordinarias

O “listismo“, no entanto, ganhou status de maioridade nestes tempos de autopromoção e de publicação aberta pelo uso intensivo da Web. Há listas diversas de filmes, músicas, hábitos saudáveis, alimentos para dietas, roupas etc. espalhadas pela internet. Algumas delas de utilidade próxima de zero…
Outras, se levadas a sério – como a lista de livros fundamentais elaborada por Vargas Llosa (dirigida a candidatos a escritor, mas submetida por muitos sites ao simples mortal!) pressupõe que o leitor médio brasileiro gastaria 21,5 anos para cumpri-la, lendo uma média de 115 páginas por ano – o que já é uma coisa extraordinária entre nós com os novos hábitos surgidos no país pós-Internet.

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FONTES:
i. link de O Globo consultado em 23/12/2016 às 9h00 – © 1996 – 2016. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização.

ii. (*) GURGEL, Rodrigo. Crítica, literatura e narratofobia, Campinas, SP: Vide Editorial, 2015, p.25/30 (excertos).

iii. ALBALAT, Antoine. A arte de escrever em 2o lições.- Campinas, SP: Vide Editorial, trad. Cândido de Figueiredo. Apresentação de Rodrigo Gurgel.

Além das listas acima, recomendo aos leitores os livros que comentei ampla ou sinteticamente aqui no meu blog ao longo do ano, principalmente na minha coluna no Jornal Opção (ex. Karleno Bocarro e Rodrigo Duarte Garcia) ou nos tópicos “Queres ler o quê?“. Boa Leitura!