Batismo, Piero Della Francesca, National Gallery, Londres. (c)Corbis Images.
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Se Ucello foi o lúdico profeta
do mundo-como-idéia, o redentor
da luz às cegas neste mundo em flor
foi o velho Piero, o anacoreta
de retorno à cidade por amor.
O mundo, transbordando-lhe a palheta,
era uma exatidão tanto maior
quanto mais perdulária, como a seta
que sobe e sem saber vai aonde for…
Piero della Francesca batizou
o eterno com o efêmero, na cor
das paredes mortais que tanto amou,
pôs sua geometria e sua dor:
seu par de asas frágeis como o vôo.
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Penso, naturalmente, no Batismo,
seu céu de asas abertas sobre o imenso;
ou na Natividade; mas se penso
em tudo o que ele viu penso no abismo,
na argila cor de cinza, e no silêncio.
É do silêncio o estranho imobilismo
do Cristo ressurrecto, aquele intenso
adentramento quieto em cada prisma,
pronto a mostrar a chaga à criatura.
Mas foi nas pedras de uma igreja obscura,
no coração de Arezzo, que Piero
atravessou a adaga do real.
O conceito, a ilusão e o desespero
não puderam cruzar aquele umbral!
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Em Arezzo é o fugaz que se proclama
nas interrupções do luminoso:
o mundo é interrompido como a chama
e é tudo meio incerto como um gozo,
tudo proclamação do duvidoso,
porque as paredes morrem e quem ama
esse acabar-se, escama por escama,
aceita seus vestígios como um pouso.
Piero equilibrou no temporal
a majestade toda do real;
nas paredes mortais daquele templo
tudo vira presença, reticência,
adeus interrompido, cada exemplo
unindo opacidade e transparência.
(…)
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(*) Poema extraído do livro “O Mundo Como Idéia“, Bruno Tolentino, pág. 399/400. Ed.Globo, 2001.