“Somente um mentecapto escreve se não for por dinheiro” (S. Johnson)
Escrever tornou-se um ato banal nestes tempos conhecidos como a era da informação. A facilidade de acesso aos meios de publicação, com a internet, trouxe ao cidadão comum a ilusão de que é muito fácil ser escritor. Tantas tonterias são cometidas que o ato sagrado de traduzir idéias em palavras parece nunca ter sofrido tantos sacrilégios.
A aventura humana do ato de “traduzir idéias em palavras”, na sintética definição de Antonio Fernando Borges (1), parece no mais das vezes uma tormenta em mar turbulento, quando não um naufrágio real.
Houve tempo em que até um relatório da gestão de um prefeito transformava-se em tradução saborosa, devido ao encanto da linguagem. Lembro-me do velho Graça, Graciliano Ramos em 1929, quando prefeito de Palmeira dos Índios (AL), desmontando a lógica da sensaboria de que, em geral, se salgam os documentos dessa natureza:
“Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamavam.
(…)
“Instituíram-se escolas em três aldeias. Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. O Conselho mandou subvencionar uma sociedade aqui fundada por operários, sociedade que se dedica à educação de adultos.
“Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. As aspirantes a professoras revelaram, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância. Escolhidas algumas delas, as escolas entraram a funcionar regularmente, como as outras.
“Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros.”
Esta citação reforça o vazio do que vemos hoje, por contraposição ao que lemos hoje nos textos ditos criativos que infestam os websites e blogs. O texto do Graciliano mostra um pouco do que nos falta hoje em sonoridade, equilíbrio e graça – sim, há uma graça no texto a que se pode designar harmonia, aquela sensação de beleza, mesmo quando o assunto não é nem um pouco tocante à beleza – pelo menos, não no sentido que se espera da arte de escrever.
Então, voltamos ao sentido inicial da tradução das idéias em palavras, para entender a citação que abre este exercício. Diz-nos Francisco Azevedo em seu Dicionário Analógico que mentecapto tem a ver com imbecilidade, no verbete 499. E expande para irresponsável, orelhudo, burro, burrical, asinino, asnal, azoinado; e por aí faz cavalgar o termo.
Analisando alguns escritos na internet, concluo a quem cabe o epíteto cunhado por Johnson. No Brasil, há muitos que escrevem com desvelo mas na gratuidade, sem esperar remuneração – como num sacerdócio, esperando a justa medida do reconhecimento – nunca a soldo; escreve-se com tenacidade, num quase sacrifício pessoal, quando me refiro aos grandes escritores. É na solidão e no isolamento, independente da crítica ou do público, distantes dos holofotes que esses dedicam-se à arte de escrever.
Já os calhamaços rascunhados sobre as pernas de “escritores” a serviço do poder – estes sim, mostram-se atoleimados, ajogralhados, apegados ao ofício abjeto do fazer com a mão para levar à boca ou ao palacete de jogral dos governos.
Se a frase de Samuel Johnson na epígrafe serve ao propósito de enfatizar a profissionalização do ofício de escritor e conclamar a que este saiba seu próprio valor; há entre nós os que levam ao rés-do-chão a “arte” e se vendem aos governos de plantão – enxovalhando e amesquinhando o que poderia ser o culto do grave ofício. Hoje escreve-se por dinheiro no Brasil, desde que agrade ao que governa.
Assim, às avessas, fica no Brasil a frase de Johnson com sua validade reversa. Seria o mentecapto aquele típico imbecil coletivo já denunciado pelo professor Olavo de Carvalho, parte da turba, servil e dócil ao poder. Aqui, onde o ofício de escrever não é profissionalizado senão para os que escrevem à sombra do poder e as uns poucos que encontraram público vasto na ficção adocicada; aqui, os mentecaptos às avessas insistem em realizar na solidão a busca da escrita perdida.
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Fontes: 1. BORGES, Antonio Fernando. Em Busca da Prosa Perdida. S. Paulo, É Real. Edit., 2013. 2. Relatório de 1929, Graciliano Ramos ao Gov. de Alagoas, Revista de História, link consultado em 12.04.16