Num desses dias de insônia, provavelmente causada pelo desassossego que me traz a campanha política 2010 no Brasil, eis que reencontro o livrinho de E.T.A. Hoffmann.
[Agradeço ao
Janela de Esquina
amigo que tenta corrigir a fórmula que adotei por
“EIS QUE NUMA NOITE DESSAS, de insônia, …” etc.
Nada mal, mas fica o “erro original” para provar minha teimosia, dado que a insônia persiste pelo(s) dia(s) que a segue(m).]
A alta popularidade deste E.T. em França já me causara interesse pelo livro, antes de vê-lo na estante virtual da Cosac Naïf e não hesitar nem um pouquinho em comandá-lo pela internet (by the way, quase não vejo livros da CN nas prateleiras de nossas livrarias, e você?). Bem, aí está que o livro aporta em minha casa junto com outro que logo passa na frente, por conta de minha alegria com a poesia brasileira e, em especial, com o poeta da Estrela da vida inteira – como já comentei, de resto, em outro blog (e nem é assunto que deveria aportar aqui, agora com E.T. na cabeça). Enfim, eis-me às 2h00 a.m. em meio à insônia e com o volumezinho caprichado de Hoffmann em mãos – “A JANELA de esquina do meu Primo”.
Eu já havia pensado em um ensaio possível sobre janelas de minha casa, d’onde vejo poucas coisas e alguns bichos. Eu que moro numa verdadeira chácara hoje (apesar de ser um sujeito urbano, incluindo os medos ancestrais de que todo bicho urbano é presa fácil). Eu que não vejo um primo sequer neste século e há muito tempo, diria: há séculos, vi-me (wow! acho que isso existe) diante de meus primos queridos – uma sucessão de Betos… todos falando sobre olhares pela janela. Eu, um aprendiz de olhares, aproveitei tanto naquela noite que até esqueci a política para me concentrar em olhares.
Meus neurônios cansados me trouxeram de pronto memórias de leituras e o primeiro professor de memória de fato foi o velho Honoré De Balzac, para quem não haveria escritor (provavelmente falava de romancista, não vou reabilitar citação ao pé-da-letra, pois que não me interessam agora e sim o fluir da memória do insone – coisa em que Marcel Proust seria melhor citação exata) sem a capacidade do olhar. Lembro-me que, desde logo, quando me acudiu a ilusão de ser escritor– coisa que fustiguei de minha vida a long time ago –, (pois) o pré-requisito não preenchido faltava-me essa capacidade de olhar. Enxergava razoavelmente bem até que o oculista me segredou que as dores de cabeça que me fustigavam nas aulas e no cinema seriam pela ausência de foco, decretando-me o uso dos óculos, coisa que nunca mais abandonei ( eu uso óculos pela miopia, mas não pela cegueira política, penso agora enquanto rabisco essas linhas – lembrando-me claramente de como abominei o posfácio desse livrinho pela leitura dispensável do sr. Mazzari. Depois do que, eu preferi ter passado a noite na taberna Lutter & Wegner do que ter gasto preciosos minutos de meu sono – de novo quase perdido com esse posfácio que logo abandonei para não me agastar…).
O livro inteiro do E.T. Hoffmann tem os pés no chão do romantismo alemão – apesar de nascido num andar elevado (física e espiritualmente), lança as bases do realismo que se avizinha. Talvez por isso Balzac o tenha lido com tamanho interesse. Afinal, a França que não demonstra especial gosto pelos vinhos do vizinho (alemão) nem tampouco por sua política expansionista (e econômica), parece ser devota de sua literatura. É, através da contra-capa escrita por Modesto Carone, que fico sabendo que “a prosa do ultrarromântico” Hoffmann foi considerada “superlativa” na terra de Balzac (e alhures). E quem ler vai gostar (promete Carone – e estou tendente a confirmá-lo), mesmo que não esteja habilitado a enxergar como o criador da psicanálise (Sr. Freud) ao “desentranhar questões do duplo e do grotesco” num dos contos do E.T. (O homem de areia).
Confesso preferir a verdade proustiana que substitui o olhar e o anotar pela “radiografia” dos seres humanos (matéria essencial , mas isso já não era matéria daquela insônia, pois que o sr. Marcel Proust em suas mais de 3 mil páginas e mais de um milhão de palavras talvez tergiverse quando diz que não tomava notas etc. etc. – o que tinha, sim, era uma enorme capacidade de ser um observador privilegiado para “estender o Olhar” na tradução literária do que observava. Foi uma espécie similar à do “pobre primo doente” a quem só restava a janela. E assim no meio do madrugada, lembrei-me da biografia de Proust elaborada por William Sansom e o detalhe perdido sobre a importância da janela a esse “outro enfermo” que encontra alegria especial em escrever sobre o que vê e do que não pode participar ativamente).
“Foi assim que ele passou a contar-me toda sorte de histórias elegantes, que ia inventando a despeito das muitas dores”.
Sob “um teto baixo em um andar elevado”, o Primo da história de E.T.Hoffmann produz uma obra que é “a fantasia (que) acende e constrói para si uma abóbada alta e divertida, adentrando o céu azul e brilhante”.
E eis, para finalizar esse post, duas observações nada literárias mas afetivas sobre a leitura do insone.
Um grande amigo – que em vida tenha, talvez, me dado as melhores lições e que, ausente, continua o mais presente em minha vida de empresário. Pois bem, esse amigo querido (já convivendo as delícias do “andar bem elevado”), usava duas expresões traduzidas ao jargão mineiro (e popular) que vejo reabilitadas no E.T. Hoffmann e descubro citações do poeta Horácio. Ei-las:
“Et si male nunc, non olim sic erit” (“E se por ora o mal se faz sentir, não será sempre assim”, citação das Odes de Horácio – livro 2, X, verso 17).
“Parturiunt montes nascetur ridiculus mus”, ou seja: “Os montes estarão com as dores do parto, (mas) nascerá (apenas) um camundongo ridículo” (trad. de Paulo Rónai, cit. na edição da Cosac Naïf).O que em boa linguagem (mineira) de meu saudoso mestre Alfredo Talarico Filho foi traduzido como:
“Não há Bem que sempre dure, nem Mal que nunca se acabe”.
E eis que “a montanha pariu um rato”.
Essa última, então, a tradução perfeita dessa fuga de minha insônia que aqui deixo registrada, como minha leitura dessa rápida alegoria, dessa “imagem fiel da vida eternamente mutável” feita por um doce E.T.(*)
– “Pobre blogueiro!”
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Fonte: “HOFFMANN, E.T.A.(1776-1822). “A Janela de esquina de meu Primo”. Tradução Maria Aparecida Barbosa. Ilustr. Daniel Bueno. Posfácio: M. Mazzari. Cosac Naïf, S.Paulo, 2010. © Todos os Direitos reservados – Ilustrações do site da Editora cit.).
Post-post (I) – Não preciso dizer o quanto fiquei honrado com a visita de “uma pessoa especial” (que abandonou-me em passado recente) para comentar esse post. Provocativa no melhor sentido do pensamento, a pessoa lembra-se de seu tempo de professora e me leva a pesquisar sobre a expressão alemã “Doppelgänger”.
Tarefa-de-casa – Essa primeira nota vem de Otto Maria Carpeaux, para falar do ‘duplo’ de Hoffmann. Eis a citação, tirada d’A História da Literatura Ocidental, vol. 5):
“Excelente crítico musical – o primeiro a reconhecer a grandeza e a significação de Beethoven, Hoffman foi ao mesmo tempo um compositor genial …Literatura e música não esgotaram os talentos desses sujeito extraordinário, pintor muto bem dotado, caricaturista, diretor de teatro … boêmio dissoluto, bebedor apaixonado – o protótipo do artista romântico. Esse mesmo Hofmann, artista, visionário e bêbedo de noite, era de dia um funcionário modelar, um dos juízes mais honrados e – em tempos difíceis de reação política – dos mais independentes que houve jamais na Prússia. Levou verdadeira existência dupla, como o dr. Jekyll e Mr. Hyde da novela de Stevenson; e transfigurou essa sua condição humana na composição singular do romance ‘Kater Murr’, em que as páginas são escritas, alternadamente, uma pelo fantástico maestro Kreisler e a outra pelo gato Murr, encarnação do prosaísmo burguês.”
Bem, é isso, por ora, até porque nunca havia lido sobre “Doppelgänger” antes e pretendo retornar ao tema proposto pela professora citada e que me deixou a tarefa e me abandonou no deserto – o que não deixa senão um buraco no post e (no coração do blogueiro) -; em outro(s) post-Posts.
Fraternellement à vous,
Beto.