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Dia do Meio Ambiente lembra Carmo Bernardes
NESTE 05 JUN 2016 – DIA DEDICADO AO MEIO-AMBIENTE, relembremos Carmo Bernardes. Pois, antes mesmo de o meio-ambiente ser um modismo e até razão para criação de partido político, o Sêo Carmo já era um ‘ambientalista’. Na verdade, era o melhor aprendiz das “atividades madeireiras” absorvidas de seu pai. Carmos Bernardes (1915-1996), – na feliz alcunha que lhe apôs o estudioso Bento Fleury, é o “Doutor dos Sertões; o Doutor do Cerrado”, com certeza entre nossos escritores o que melhor entendeu o bioma em que vivemos – a maior savana do planeta – o cerrado. Perto dele, até o grande Washington Novaes é aprendiz.
Pensei em homenagear o Carmo com um texto inédito – até o principiei, mas vi que a tarefa era empreitada para mais de uma quadra do ano – tarefa similar a derrubar “um jatobazeiro que três homens não abarcam” (como os três homens do “Barreiro dos Três Cruzeiros) – do magistral conto inicial de Idas e Vindas (1977). Que o compadre Chico Sena saiba que não desisti da crônica “Meu tamboril me ensina a sondar os ventos e as chuvas. Ou: Minhas amadas árvores: lembranças de Carmo Bernardes”.
Cheguei a ligar para o meu amigo, o poeta Acadêmico Aidenor Aires, mas desisti da empreita por ora. Deixo a palavra de homenagem a Pedro Nava, que sobre Carmo escreveu uma apresentação inesquecível no livro “Idas e Vindas” (1977), editado pela Codecri, editora de O pasquim, com ilustrações de Poty.
Apresentação do Livro Idas e Vindas de Carmo Bernardes
*Por Pedro Nava
Evidentemente que fazer a apresentação de um livro de Carmo Bernardes é honra para mim como seria para qualquer outro. Note-se bem que eu estou falando da apresentação de um livro e não do próprio autor. Esse, por mais que se oculte, é conhecido da elite dos letrados e artistas brasileiros como um dos nossos maiores regionalistas. Vive embiocado em Goiás, vive se escondendo, é avesso a qualquer gênero de de publicidade mas é autor que se impõe pela própria força a qualquer pesoa que o leia. Tenho feito essa experiência repetidas vezes. Falo nele a este, àquele. Ninguém sabe quem é. Pois então vou empretar a você um livro dele. Empresto ora as Rememórias, ora Reçaga ora essa saga do nosso interior, esse épico Jurubatuba que para mim tem sua ponta cervantina. E o pasmo é imediato naqueles que estou tesstando. Como é que este homem não é disputado pelas grandes editoras e não é conhecido de todo o Brasil? Coisas lá dele. Do capiau esquisitão e distante que prefere curtir seu fuminho cortado a canivete, sua pesca e sua caça a qualquer coisa que se pareça com política literária.
Agora ele vai sair por intermédido da Codecri e entrar assim em contato com o grande público. Então o Brasil conhecerá um de seus maiores escritores. Não estou aqui para fazer a crítica de sua obra. Esta já foi magistralmente traçada em “Força e expressão de uma literatura”, por Nelly Alves de Almeida, em estudo que é uma obra-prima de exegese e de crítica. Quero apenas chamar a atenção para certos aspectos da linguagem de Carmo Bernardes. A propósito da maneira de falar do nortista, do brasileiro do centro, dos de leste e oeste, do carioca, do paulista, do gaúcho eu já tive ocasião de dizer que seus sotaques e modismos não corrompem nem são defeitos do idioma. Antes são dele maior riqueza, do mesmo modo que o português do Brasil é mais um tesouro da língua mãe peninsular. O goiano de Carmos Bernardes é uma das mais lindas falas brasileiras que tenho ouvido e visto por escrita. Rica de homofonias, de contrações que são verdaderos achados de síntese, da fabricação riquíssima de verbos a custa de tudo quanto é substantivo – numa opulência e numa liberdade que só encontram símile na língua inglesa, da criação não arbitrária mas seguindo uma espécie de lógica de língua nascente que se vê nos neologismos do autor de Reçaga – tudo isto é seiva que mostra força e riqueza, a variedade e a reserva que o regionalismo representa para nossa falação do português do Brasil.
Em Carmo Bernardes sente-se a fala do povo mas tornada literária, por um mestre da memorialística do conto e do romance. Ele usa a mesma para exprimir sua terra, principalmente no sentido dramatico que lhe dá o contato do homem com suas asperezas, com os outros homens, com a gente – considerada agora em bloco, com o tempo inexorável, com o mato, os bichos, as águas de rio, as de charco, as de poço – habitadas pelo Bicho Rodeiro que me parece um sincretismo do Buracão de São Paulo, do Minhocão – ainda daquele estado e de Minas e do Caboclo d’Água que vive no fundo do São Francisco.
Que argúcias de caçador e pescador não precisa o Homem para viver assim cercado de meio hostil, de semelhantes inimigos, bicharada de verdade e fauna de mal assombrado. Essa matéria-prima de sua literatura é sentida na pele, vista, cheirada e captada pelos ouvidos finíssimos de Carmo Bernardes. Com seus claros escuros, suas tintas vivas ou esmaecidas ele faz os flashes do livro atual [Idas e Vinda, Codecri, 1977].
Mais flashes mesmo, simples fotografias, que uma seqüência cinematográfica. Quero dizer com isto que ele se despreocupa e nem toma conhecimento da necessidade de um enredo, de uma anedota para seus contos. Esses constam, principalmente, da apresentação de uma cena altamente dramática sobre a qual o pano se levanta súbito e desce outra vez de repente. É geralmente um quadro cotidiano e terrível que se vê então. A nitidez e a flagrante realidade estatelam o leitor que não precisa de antes nem depois para construir ele mesmo sua própria interpretação do que viu. Nesse ponto de vista, Carmo Bernardes é um sugestionador e um criador imbatível. Quando se começa sua leitura e sente-se que ele já está no vim tem-se vontade de perguntar – como? Quando se a termina – por quê? Mas isto está implícito quando se descobre que ele geralmente se dá ao trabalho de fazer um conto só com seu desfecho ou chegando a um impasse. O resto fica para a intuição poética do leitor. Ele que se leve até ao autor e trate de investigar suas intenções. O escritor goiano por influência ou por simples adivinhação, tem coisas de Tourgueniev, Maupassant e Poe – enredo à parte. Digo no drama, na situação de espanto ou na de humor negro.
Cada estória isolada do livro atual [Idas e Vindas: contos, 1977] representa o que eu disse acima. Lidos em conjunto, na ordem em que estãou ou noutra que apraza lhes dar – esses contos se untam, fazem elos de corrente e adquirem então o nexo de um grande romance. O de sua terra, o do coração deste Brasil – que o goiano Carmo Bernardes auscultou como ninguém.
PEDRO NAVA*
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(*) Fonte: BERNARDES, Carmo. Idas e Vindas: Contos e Causos. Rio De Janeiro: Codecri, 1977. Apresntação de Pedro Nava, ilustr. Poty. Texto cit. p.7/9. Para saber mais sobre Bento Fleury e o estudo sobre Carmo, consultar o link deste blog.
Saudades de Carmo Bernardes, 20 anos depois
A AUSÊNCIA do escritor Carmo Bernardes, cujo falecimento hoje completa 20 anos, foi sentida e anotada por um de nossos confrades no grupo virtual que mantemos no feicebuque (FB).
Hélverton Baiano diz em sua memória do imortal goyano-mineiro que Carmo é uma espécie de “Guimarães Rosa desvalorizado, meio esquecido“.

Do FB de Hélverton Baiano & Grupo Literatura Goyaz
Membro da talentosa Geração de 1915, Carmo nasceu em Patos de Minas, no dia 02 de dezembro/’15, tendo sua família se mudado para Formosa em 1920; depois, para Anápolis. Portanto viveu entre os goyanos desde os 5 anos de idade (e não dos 15!); tendo publicado dezenas de livros e convivido, entre seus contemporâneos de talento em Goyaz, com os escritores Bernardo Élis, Eli Brasiliense e José J. Veiga. Carmo Bernardes, autodidata, fez da escrita sua vida; defendeu seu pão cotidiano com a máquina de escrever e não abandonou o planejamento e o bem pensar, antes de sair tamborilando no teclado das Olivettis de então.
Ao comemorar o centenário da valorosa Geração de ’15, no ano passado, entrevistei o poeta- acadêmico Luiz de Aquino, que destacou sobre o quarteto:
“Nos quatro notáveis que este ano [1915] se tornam centenários, destaco a elevada qualidade de sua linguagem [José J. Veiga]. O Veiga e o Bernardo são dotados de um lirismo emocionante! Eli nos brinda com a narrativa clara e elevada, sem perda do entendimento pelo leitor comum. E Carmo enriquece-nos com a musicalidade rítmica de um excelente contador de causos, dotando sua prosa de um vocabulário telúrico o bastante para significar um dos mais ricos glossários do linguajar dos sertões de Minas e Goiás. Não compreendo como se estuda num curso de graduação em Letras neste Brasil Central sem fazer uso exaustivo desses autores! E o triste é constatarmos que esses cursos, tanto os de bacharelado quanto os de licenciatura, despejam no mercado profissionais de pesquisa e ensino sem a base mínima para fazerem jus a seus títulos.”
LEMBRO-ME bem do Seo Carmo, na Livraria Cultura Goiana, ali perto do Café Central mantinha o sr. Paulo Araújo, onde o jovem que eu fui encontrava o respeitável cronista, distante, mas sempre afetuoso e firme (sempre meio amuado, mas afável) e que me dava conselhos sobre o que ler. Sobre os livros dele mesmo, que tenho alguns autografados, só me lembro de ganhar autógrafo lá na saudosa livraria e na feira do livro que a turma da Cultura Goiana realizava no coreto da praça Cívica, aos domingos.
Ao pedido de indicação de livros, o experiente autor não hesitava em orientar seu jovem fã, na época com 30 anos: eis um livro que merece ser lido, disse-me ele um dia na Cultura Goiana; e apanhou na estante do Paulo Araújo “Os Frutos Selvagens da Sibéria”. Comprei o livro na hora e um ano depois, em 1987, tive a honra de receber o autógrafo de Evgueni Ievtuchenko, que fazia um tour pelo Brasil, em plena Recife, onde eu me encontrava residindo por conta do meu trabalho como assessor na Caixa Econômica.
Gostava também de ler o Carmo cronista. Não me lembro se n’O Pop ou na Folha de Goyaz. Lembro-me bem de seu mau humor contra a poda indiscriminada de árvores pela nossa distribuidora de energia elétrica. Eu, amante da Natureza e das árvores me deliciava com o tom que o Bernardes dava à sua “bronca” na Celg. Ele era um defensor da Natureza, um verde avant-la-lettre, desde que com o pai iniciou-se nas “atividades madeireiras”; autodidata, Carmo fez curso de Estatística e Recenseamento, tendo tabalhado no Censo de 1940. Jornalista, foi a profissão que exerceu por mais tempo; mas o “mateiro” era o que morava no sangue do mineiro-goyano Carmo. Dirigiu redações de jornais em Anápolis e Goiânia e dedicou-se às atividades ecológicas antes que isso fosse o modismo político dos dias atuais. Foi conselheiro da Fundação Inca, representante ao I Encontro Nacional sobre a Proteção e Melhoria do Meio Ambiente e à 1a. Conferência Nacional de Meio Ambiente.
A vida o coroou com o título de “Doutor do Cerrado”.
Ainda no ano do Centenário, fomos brindados com um artigo de fundo, assinado pelo escritor Bento Fleury no Diário da Manhã (veja link abaixo) e com uma palestra na Academia Goiana de Letras, proferida pelo acadêmico, poeta Aidenor Aires, da qual infelizmente não tenho em mãos a transcrição de imediato, quem sabe volte com outro post sobre o tema…
Ligado ao Partido Comunista, não sei em que medida (se filiado ou simpatizante), o Carmo conquistou a simpatia de leitores dentro e fora da estreita estética do realismo marxista. Numa época em que qualquer simpatia com os desfavorecidos do campo e das cidades poderia colocá-lo em listas de perseguições, o escritor foi ouvido em inquérito policial-militar. Em artigo da então doutoranda Márcia Pereira dos Santos, OPSIS, Revista do NIESC, vol.5, 2005, link consultado em 25.04/2016 Carmo não era do “partidão”, mas tinha a simpatia de membros eméritos do ‘partido’, como Jorge Amado, que o elogia na contracapa da 3a.edição de “Jurubatuba”.
Transcrevo do artigo da Doutora Márcia Pereira dos Santos (2005).
“Para a ditadura militar, subversivo era todo aquele que tinha idéias contrárias àquelas defendidas pelo regime. Bernardes estava, pois, condenado a refugiar-se para não ser preso como foram outros intelectuais goianos na mesma época. O ano que fica na Ilha do Bananal, marcado pelo medo diário de ser preso, as dificuldades econômicas, a distância da família, que ficara em Goiânia, e a doença contraída reforçavam a necessidade que o escritor sentia em não se deixar calar totalmente. Talvez aqui esteja a justificativa para Bernardes, anos mais tarde, escrever o livro Xambióa: paz e guerra, (acessado apenas segundo entrevistas com sua filha Ana Maria e com D. Maria Nicolina) e mantê- lo não publicado. O mesmo ocorrendo com outro livro de relatos, Visto do Tempo, sem data para lançamento e sobre o qual o autor orientou sua família a só publicar depois de sua morte.”
[nota 2 da Autora: “2 No momento em que este artigo foi escrito o livro “Xambióa: paz e guerra”, permanecia inédito sendo publicado em abril de 2005 pela Agencia Goiana Pedro Ludovico Teixeira, durante a I Bienal do Livro em Goiânia, quando esse artigo já havia sido encaminhado para publicação]
…
“Autodidata, Carmo Bernardes não teve formação acadêmica. O interesse pelos livros e pelas palavras nasceu ainda na infância sob influência da mãe. Cursou apenas as séries iniciais do ensino regular, mas embrenhou-se no contato com livros, palavras e escritos, tornandose um aficionado leitor dos mais diversos escritores e gêneros literários. À medida que se envolvia com as letras, Bernardes ia compondo um universo de referência que mais tarde marcaria seu estilo de jornalista e escritor. Somente aos 30 anos, depois de ter passado por inúmeras outras profissões, Bernardes entra no jornalismo, na cidade de Anápolis. Até esse período era um entusiasta do partido comunista, porém, segundo sua filha Ana Maria do Carmo, em entrevista concedida em 10/05/04, tal entusiasmo não se prolonga, pois o autor se distancia do partido. Redator, cronista e repórter, Carmo Bernardes desenvolveu o trabalho jornalístico trazendo consigo a vida forjada no contato com a cultura rural, com a experiência de carpinteiro do pai e a sabedoria popular da mãe. No jornal A Imprensa, de Anápolis, iniciou uma atuação mais sistemática no jornalismo, nas décadas de 1940 e 1950. Ainda em Anápolis ingressou na publicação do semanário A Luta, jornal independente, muitas vezes impresso pelo próprio Bernardes com a ajuda de D. Maria Nicolina do Carmo, sua esposa. Jornal combativo e 112 OPSIS – Revista do NIESC, Vol. 5, 2005 atento aos problemas sociais, A Luta expressava as aspirações do autor de uma maior difusão da cultura goiana, bem como dos problemas que afligiam os goianos. Em 1959, Bernardes transfere-se para Goiânia, mas somente em 1965 volta a ocupar-se do jornalismo, tornando-se redator do Jornal Cinco de Março e fazendo algumas contribuições em rádios da capital. Neste ano de 1965 é convocado a depor no IPM. Em 1966, publica seu primeiro livro de contos: Vida Mundo. Bernardes levava uma vida simples em Goiânia. Da casinha verde na Macambira, atual setor Pedro Ludovico, ia difundindo suas concepções de mundo que se propagavam nos jornais e em revistas da capital goiana. Trabalhava em órgãos públicos e freqüentava o Café Central, ponto de encontro que marcou a vida de uma geração de intelectuais goianos. Segundo o Dr. Orlando Ferreira de Castro, em entrevista concedida em 11/05/04, o Café Central serviu de palco de inúmeros debates e discussões entre vários grupos que ali se encontravam. Bernardes estava em meio a intelectuais e, com sua presença silenciosa e observadora, era levado a intervenções que, muitas vezes, deixavam outros intelectuais surpresos com sua capacidade de entendimento e compreensão dos mais variados assuntos. Os encontros noturnos no Café Central prolongavam-se por horas, permitindo um conhecimento mútuo entre os que ali se reuniam. As principais publicações de Bernardes, nesse momento, eram artigos e crônicas, que foram, posteriormente reunidas em dois livros, Rememória (1969) e Rememória II (1969). As crônicas apontam para a personalidade do seu autor e, ainda, podem ser indícios dos motivos da denúncia de Bernardes à ditadura militar e, consequentemente, à sua fuga para a Ilha do Bananal. Tematizando a vida cotidiana na nova capital, as mazelas da população pobre, as discrepâncias entre o povo e a elite, as diferenças entre a chamada grande literatura e a sua forma de escrever, as crônicas de Bernardes podem ser lidas como “panfletos” de uma concepção política de mundo. Ao denunciar, diariamente, as injustiças e as incoerências da vida social, Bernardes, muitas vezes lido apenas como um escritor de curiosidades, faz de seu espaço no jornal um meio de ir revelando o que vê e o que sente. Disfarçado em um displicente “caipira escritor” deixa claro, em pitorescas crônicas, que reproduzem a cultura rural ou em histórias de anônimos caipiras na cidade, os dramas vividos pelos homens do campo em Goiás nesse período, especialmente a precariedade da vida rural e a expulsão dos lavradores de suas terras; a incapacidade do mundo urbano em assimilar esses recém chegados, considerados inaptos à vida na cidade; a falta de uma estrutura que atenda às necessidades de alimentação, saúde, educação, emprego e moradia da população que está se formando na nova capital. Vê-se em Bernardes, um número crescente de crônicas com críticas à sociedade na qual está inserido. Não é, pois, de se espantar as suspeitas levantadas sobre o autor como subversivo. Observador do povo, Bernardes não se acanhava em dizer que escrevia para esse mesmo povo em um momento em que “povo” poderia traduzir ou expressar o imaginário circulante de possíveis revoltas e revoluções, que a ditadura militar viera combater, como dizia os discursos dos militares. Além disso, a presença de Bernardes no governo do Estado, logo deposto pelos militares, e no Jornal Quarto Poder da Universidade Federal de Goiás, corrobora na denúncia do autor como sendo oposição ao regime. De certa forma, Bernardes recebe com surpresa a “dedoduragem”, como diz em crônicas do livro Rememórias. Considerase um “coitado” que escreve suas “caraminholas” e que nunca foi marxista ou comunista, como fora acusado – não pôde ser encontrada até o momento, no contexto da presente pesquisa, alguma crônica do autor que mencione sua passagem pelo PC – , não se considerando, portanto, um indivíduo perigoso a quem quer que seja
Comunista ou não, Carmo me conquistou por suas narrativas e suas crônicas. Lia dele tudo que me caía às mãos e no mais das vezes era forçoso concordar com Pedro Nava:
“Sua prosa é feito moenda que não volta nem deixa tirar. A cana passa inteirinha e a gente tem de ter cuidado que não entre a mão – para não soltar nosso sangue com o caldo. Seu herói [em Jurubatuba] – assim derrubador de mulheres, alegre com elas, protetor dos fracos e meninos, esperto com os homens porém trouxa com a humanidade, é um Dom Quixote caipira. Digo Dom Quixote sobretudo pela solidão (insisto nisso) dos seus personagens.”
Algumas citações retiradas ao artigo de Bento Fleury** comprovando a maestria de Carmo, o “Doutor dos Sertões; o Doutor do Cerrado”, com certeza entre nossos escritores o que melhor entendeu o bioma em que vivemos – a maior savana do planeta – o cerrado:
“Agora está numa infância enorme é o pau d’arco roxo. Quem sou eu para intrometer! Só uma coisa posso dizer e provar: desde que me entendo por gente sei que o cerne do ipê roxo cura mal de garganta, pereba, sarna e para matar piolho de animal e gente é sem parelha.”
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“Já o pequi, a bem dizer, não é fruta para gulodice. A sua ação é mais mesmo de sustento de aguentar relance na falta de recurso maior sustância no passadio. O pequi é um santo remédio. Despeitora as pudriqueiras que ficam no peito após a gripe, renova a coragem, tem manteiga e sem sustança.”
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“Vai narrando ainda sobre outras plantas, em que Bernardes (1974, p. 17) em seu livro Força da nova evoca a mata-cura, uma erva medicinal, de cujas folhas moídas fazem-se cigarros para curar bronquite (Só se deve fumar somente um por dia.):
“Por envolta de terreiro pegou a espraguejar, encher de pé de joá-brabo, melão-de-são-caetano a lastrar misturado com cabaça amargosa, crescer fedegoso, carrapichal, mata-e-cura”, também os nhanbus na saroba cerradeira: “Uns nhambus, por exemplo, aí na saroba, azucrinam a alma das criaturas de Deus, numa orquestra com tudo quanto é versidade de pássaros, que, se facilitar, endoidece.” Bernardes (1971, p. 11).”
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Sobre o Oiti:
“…o oiti, que é árvore frondosa, muito encontrada nas matas do norte de Goiás: “O gringo encostou à sombra de um oitizeiro, abanando a cara com o chapéu, ensopadinho de suor.” (Bernardes, 1977, p. 22), assim como as sangra d’águas, que são árvores dos brejos e das beiras dos córregos, mescladas de folhas vermelhas: “Assim como não sei viajar sem ela aí dum lado para merendar meio-dia à sombra das sangra-d’águas no barranco dos ribeirões da linfa pura e fresca.” (Bernardes, 1976, p. 12).
…
Sobre a “Mamacadela”, Bento pinça esse trecho:
“…a mamacadela, que é uma frutinha amarela, silvestre, também conhecida por fruta-cera, cuja raiz é diurética e com a qual se faz um preparado terapêutico contra vitiligo: “Apois si é o inharé, que uns conhecem por mama-de-cadela ou fruta de cera. A mama-cadela também é conhecida como fruta-de-cera e inharé e tem de duas espécies: uma que dá pau alto e outra mais ou menos rasteira que dá de vergônteas. Bacupari, gravatá, marmelada-de-cachorro… enfim, quando ando no mato vou levando de eito toda fruta que encontro.”
…
Fontes:
- LITERATURA E PERSEGUIÇÃO POLÍTICA EM GOIÁS: O CASO DE CARMO BERNARDES, Doutora Márcia Pereira dos Santos – OPSIS – Revista do NIESC, Vol. 5, 2005.
- Artigo de jornal Diário da Manhã (Goiânia) – matéria de Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Letras e Linguística pela UFG, pós-graduado em Literatura Comparada pela UFG, mestre em Literatura pela UFG, mestre em Geografia pela UFG, doutorando em Geografia pela UFG, escritor, professor e poeta.
- Link para a nota do Opção Cultural (Yago R Alvim).
Sobre “Monsieur Ouine”, de Georges Bernanos : Lapaque, Asensio & Cadernos de JLK…be
ENQUANTO me preparo para escrever uma resenha do livro “Sob o Sol do Exílio¨ de S. LAPAQUE, vou lendo e relendo aqui e ali sobre G. Bernanos.
Boas surpresas ao leitor na 1a. ou enésima leitura…
O livro de Sébastien Lapaque, recém-lançado pela É Realizações, em português, eu o tenho lido em francês, na edição da Grasset, recebido em 2009 como presente de correspondentes en France (Merci à Marion & Sylvain).
Muito interessante a parte em que Lapaque trata de “Monsieur Ouine” (p.105 a 118 da edição francesa). As referências de Lapaque são consistentes e contribuem com a compreensão da obra bernanosiana, levando o leitor a buscar mais informações sobre a gestação do romance (confusão nas primeiras edições, má-recepção pela Crítica, recuperação diante do público e, finalmente, a paixão como romance de experiência e de afirmação da voz final do romancista).
“Ouine” – literalmente “Sim-Não” (Oui, Ne [pas]) foi originalmente intitulado “La Paroisse Morte” (A Paróquia morta), título que GB trocou num período que vai da primavera de 1936 (quando iniciou a escrita) até maio de 1940, quando o escritor envia (de Barbacena) a Maurice Bourdel, seu editor em Paris o Capítulo XIX do que ele próprio intitulara como o livro que representa(ria) seu “maior esforço como romancista“.
E foi em Minas Gerais que Bernanos colocou o ponto final no que Lapaque chama do livro que contém a “teologia bernanosiana da noite“. Outros tinteiros já se tinham esvaziado com as tintas negras mas não da parte de um católico. Seus irmãos da noite – como quer Lapaque (ou das tinta noturna – frères d’encre) agnósticos (ou ateus) saudaram Monsieur Ouine com entusiasmo de leitores que se identificaram com o livro – Céline, Simenon e A. Artaud.
Este último teria dito:
“Je ne sais pas si je suis pour vous un réprouvé, mais en tout cas, vous êtes pour moi un frère en désolante lucidité.”
(Antonin Artaud)
No livro “Cadernos de Monsieur Ouine” (Edit. Seuil), do Monsenhor Daniel Pézeril, Lapaque diz que o leitor tem a oportunidade de viver uma experiência interessante: como que lançar um olhar, espiando sobre o ombro do escritor em pleno interior das Minas Gerais (Pirapora ou Barbacena – fiquei em dúvida – checar onde estava GB em 1943/46?!), onde num caderno colegial barato, com a bandeira brasileira na capa, sob a divisa do “Ordem e Progresso”, o nosso francês errante colocava palavra-a-palavra, avançava linha-a-linha num esforço de meia-página por dia no que para o escritor seria seu maior esforço e seu mais trabalhoso romance à la (Georges) Simenon.
O que lhe sai ao final o mais Bernanos de sua ficção. Onde a voz de Bernanos mais se faz sentir, faz-se ouvida, não obstante a primeira reação negativa.

Capa da edição incompleta (sem o 19o. cap.) do romance Monsieur Ouine, Plon, 1946. A 1a. edição da Ed. Atlântica (Rio, 1943) quase condenou o romance ao desprezo dos leitores e da crítica por ter sido publicada incompleta, cheia de lacunas e gralhas… Somente em 1951, graças a Albert Béguin, editor-amigo de GB, o romance ganhou sua versão definitiva e que ainda encanta leitores e críticos.
Sobre G Bernanos : no blog Carnets de JLK. ref. a Juan Asensio.
Leia trechos do livro de Sébastien Lapaque, no site da É Realizações.
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Fonte principal – LAPAQUE, Sébastien. Sous Le Soleil de L’Exil : Georges Bernanos au Brésil 1938-1945. Paris, Bernard Grasset, 2003, 227 pp. Outras fontes cit. por links ou figuras. Todos os direitos reservados (c) Grasset, Plon, JLK, Asensio, Lapaque.
Meu amigo-virtual (um irmão bernanosiano, mais preparado e mais lido), o polemista Juan Asensio escreveu e JLK transcreveu e comentou o que chama de “salamalec” à Asensio… Preguiça de traduzir por ora… quem sabe mais tarde, ao longo do feriadão?!
“Il faut lire et relire Monsieur Ouineaujourd’hui, comme on lira bientôt La Route de Cormac McCarthy, sans se demander si nos contemporains sont encore « dignes » de ce livre et qui le comprendra. Juan Asensio insiste sur l’ « apophatisme bernanosien » comme si le roman ressortissait essentiellement à une théologie négative, sans souligner assez, me semble-t-il, l’affirmation christique secrète et traversante de ce livre, qui recrache le tiède pour mieux figurer les avatars inattendus voire infinitésimaux de l’Amour. Monsieur Ouine, dans l’interprétation d’un René Girard, pourrait être dit le roman de la médiation interne portée à son point extrême, comme il en va des romans de Dostoïevski. Comme celui-ci, mais par une voie plus droite, Bernanos dépasse la tentation du désespoir et mime la sortie du cercle vicieux, comme « par défaut ». L’esprit d’enfance, au sens évangélique, irradie le tréfonds de ce livre glauque et même sale, alors même que cette souillure apparente échappe à la damnation réelle du froid et du non-être – ce que Juan Asensio décrit justement : « Le Mal c’est le froid, le Mal c’est le néant, le Mal n’est rien d’autre, finalement, que l’ennui, ce dernier parvenu à son plus idoine état de desséchement »…” (Do blog http://carnetsdejlk.hautetfort.com/bernanos/).
Juan Asensio. La littérature à contre-nuit. Sulliver, 2007.