BALZAC
Se disser sim a Honoré de Balzac, terá o leitor uma miríade de informações a seu dispor – entre romances, originais e em tradução ao português, bem como uma das mais ricas fortunas críticas.
-Ah, mas ninguém lê tanta coisa e Balzac é muito antigo? contradiz meu interlocutor.
De fato, às vezes quanto mais velho o escritor, melhor, feito alguns vinhos. Há os jovens (chardonnays, p.ex.) que devem ser tomados logo; mas há os vinhos de guarda. Balzac é assim… os que o relemos, sabemos todos, desde o pai da matéria o mais brasileiros dos húngaros – o sr. Paulo Rónai que coordenou a maior coleção de escritos do francês para o nosso idioma. Reler Balzac parece ser ainda melhor…E a quem, francófono, pode lê-lo no idioma criado, duplamente será brindado.
TERMINADA a leitura de “O lírio do campo” (Honoré de Balzac), sinto-me no dever de dizer-lhe, amado leitor, leia Balzac. Há um plano de leitura, na verdade, há três ou mais planos de leitura da Comédia Humana. Eu fiz o meu: não ter nenhum plano. Nos últimos dias, por indicação de uma amiga virtual, reli o “Pai Goriot”; por sugestão de um respeitável acadêmico goyano (o sr. Alaor Barbosa), de quem tenho a honra de ser vizinho e com quem posso dialogar vez por outra, reli “Os camponeses” e, por sucessão de leituras, caiu-me (ou teria eu caído no vale da Touraine!) às mãos este “O Lírio do Vale”…
Sinto-me, ao final, como o Sr. Paulo Rónai – falava ele, em páginas anteriores, sobre a polêmica em torno d’O Lírio: “deixemos – diz Rónai: “cada leitor resolver por sua conta a paradoxal questão se “O lírio…” é uma obra-prima imortal ou um livro de segunda ordem, falso e pretensioso.
“Quando separado por alguns anos da última leitura, eu mesmo inclino-me sempre para julgá-lo um livro fraco; mas cada vez que o retomo, o romance arrebata-me e me subjuga. Durante a própria leitura, irrito-me com algum trecho piegas, Félix devorando as lágrimas da amada ideal, exaltando-lhe as perfeições universais, conversando num estilo untuoso que não é dele com o Padre De Dominis, ou comparando seus sofrimentos de amante insatisfeito com a Paixão; mas minhas resistências desaparecem ante o esplendor dos quadros da natureza, tão bem harmonizados com os estados de alma do protagonista; a descrição da vindima (p.313/4); a arte de Balzac em engrandecer o assunto, ínfimo em si, emprestando-lhe proporções de tragédia grega; suas observações magníficas sobre a força dos sentimentos reprimidos na mocidade, o sensualismo oculto no amor platônico ou mil fenômenos pequenos e simbólicos da paixão amorosa. Os grandes temas do escritor: o conflito da alma e da carne; a justiça de Deus e os possíveis erros da providência; os assassínios íntimos que a sociedade deixa impunes, ressoam aqui mais uma vez numa sinfonia polifônica. Romance complexo, perturbador, contraditório, que nos deixa ao mesmo tempo insatisfeitos e admirados; autêntico romance de Balzac”
(Paulo Ronai, p.231).
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Balzac em traje de monge
Duas mulheres…
O buquê de Félix para Henriqueta
Já disse aqui (ou alhures) que Balzac levava extremament a sério seu ofício de escritor – ao qual se dedicou por mais de 30 anos em busca de fama, de fortuna e prazer – tendo auferido no máximo, o mínimo: ser feliz e conhecido por um tempo, mas vivendo atolado em dívidas. Tão a sério o fazia, como se fosse um sacerdócio, este ofício, que Balzac de um tempo em diante de sua jornada, vestia-se como um monge (vide quadro ilustrativo).
Seguindo o conselho precioso de Antoine Albalat, tenho tomado notas de tudo que leio. Afinal, provou-me o mestre que “para apreciar melhor a leitura” há que se tomar notas. “O proveito da leitura” – decreta Albalat, “depende de como se lê. Ler e tomar notas, não confiar na memória. “Não haveria sábios, se nos fiássemos nela. A verdadeira memória consiste, não no recordar, mas em ter ao alcance da mão, os meios de encontrar. A primeira condição para se ler bem é, portanto, fixar o que se quer reter, e tomar notas. Um livros que se deixa sem ter extraído dele alguma coisa, é um livro que não se leu…”
Bem, “O Lírio” foi dedicado ao amigo e médico de Balzac – o dr. J.B. Nacquart (membro da Academia Real de Medicina) nesses termos: “Caro Doutor, eis uma das pedras mais trabalhadas da segunda fiada de um edifício literário lenta e laboriosamente cconstruído; nele desejo inscrever o vosso nome, tanto para agradecer ao sábio que outrora me salvou, quanto para celebrar o amigo de todos os dias” (H.de Balzac).
A consciência do escritor está na dedicatória – ele estava “lenta e laboriosamente” construindo sob a égide de um plano. O planejamento do edifício da Comédia Humana – como se sabe – foi imaginado por uma mente privilegiada e não ficou completo por razões conhecidas – o desaparecimento do Autor com a idade de 51 anos (o romance “Os camponeses” teria sido completado por amigos da sua amante, a condessa Hanska!).

Ora, a morte, dizia o próprio Balzac na citação mais conhecida: “…é tão inesperada no seu capricho como uma cortesã no seu desdém; mas a morte é mais verdadeira – ela nunca renuncia a nenhum homem.”
Ei-lo, pois, no seu leito de morte (1850), o homem detentor de uma das maiores capacidades imaginativas e de escrita que se conheceu na língua de Molière. Trabalhava 18 horas, segundo os próximos, porque tinha a mente fervilhando de idéias, de um “profundo interesse por tudo” (da botânica à medicina, passando pelos hábitos, costumes e pela Moral vigente à sua época!) tudo, coisas e personagens de certa forma o atormentavam nos inúmeros entrecruzamentos de relações e nas misérias e grandezas do que eram capazes de encetar.
N’O Lírio…(em francês “Le lys dans la Vallée”, 1835) há toda uma História na história. Parte dos “Estudos de Costumes/Cenas da Vida Rural”, o livro é amado e odiado. O modelo da mulher virtuosa que Balzac anunciara no prefácio da 1a. edição de “O pai Goriot” é mesmo de uma virtude acima da média em França e de tal forma angelical que alguns críticos a refutam como inverossímel, personagem inexistente (ou improvável) na França de então…
Para Honoré, em carta à condessa Hanska, “O Lírio do Vale será sob forma humana a perfeição terrestre, como Serafita será a perfeição celeste“. E mais tarde, em outra carta à mesma Hanska: “Mas o Lírio! Se o Lírio não for um breviário feminino, não sou nada. Nele a virtude é sublime, sem ser aborrecida”. O sr. Paulo Rónai – que coordenou a edição dos 17 volumes da editora do Globo, nos anos ’50, brinda-nos com uma apresentação ao romance em que mostra a polêmica havida em torno da aceitação do romance pela crítica da época; tudo iniciado pela inimizade havida entre Balzac e o “príncipe da crítica” Sainte-Beuve (que também se permitia escrever poemas e romances).
A Sra. De Berny que serviu de modelo para a Condessa de Mortsauf (Henriette ou “Branca”) escreveu em sua última carta ao autor o melhor dos elogios que um romance pode ter (o da leitora!): “Posso morrer; estou certo de você ter na fronte a coroa que nela eu desejava ver. “O Lírio” é uma obra sublime sem mancha nem falha“.
Nem todos os leitores, no entanto, pensam o mesmo: “O Lírio… é um dos grandes romances menosprezados da literatura romântica, seria o adeus de Balzac à mulher que foi “toda a minha família”- uma vida que é também uma de minhas obras” – afirma Graham Robb, biógrafo inglês de Balzac (ROBB, 1995, p.251).
Alguns críticos notáveis hostis ao “Lírio” são listados por Paulo Rónai e foram de certa forma apagados pelo tempo, enquanto o romance continua florindo a mente de leitores pelo mundo afora…Um dito Sr. De Faguet chama o livro, sem rodeios de “talvez o pior romance que conheço, por seus “discursos de pedantismo” (fala da condessa de Mortsauf), mas foi este “excesso das críticas”, aind segundo Rónai, que atraiu os leitores que foram confirmar e assim o romance angariou fama entre “entre leitores dos mais qualificados”.
Só me resta, dileto leitor, repetir com Lobato em carta Godofredo Rangel:
<<“Meu entusiasmo é tanto que só tenho um conselho a dar-te: lê “O lírio do vale” e depois varre da tua cabeça o alfabeto, para que nunca mais nenhum livro venha profanar essa leitura suprema e última. Lê “O Lírio…”, Rangel, e morre. Lê “O Lírio…” e suicida-te, Rangel. Se o não tens aí, posso mandar-te o meu – e junto o revólver”>>
(Monteiro Lobato, cit. por Rónai na apresentação do romance na edição da Edit. do Globo, 1959, p. 230).
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A quem interessar possa, minha cena predileta – a do buquê de Félix para a Condessa de Mortsauf está descrita a uma dezena de postagens abaixo no meu facebook e também aqui. [a confreira Maria Lúcia Gigonzac já nos alertava sobre a boa escolha dos nomes nas obras de Honoré de Balzac, principalmente este para “Branca”, Henriette, Condessa de Mortsauf.]
Avaliação de leitura: 4,5* – Vale ler, mas ler com a desmedida atenção que Balzac exige e merece.
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Fontes: todas as citações d’O Lírio… neste post são da edição de 1959 da Editora do Globo, coord. Paulo Rónai, trad. deste romance por Gomes da Silveira. Sobre a biografia de Balzac, ver ROBB, Graham. Balzac: uma biografia, S. Paulo, Cia das Letras, 1995, p.251/3.
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