Piero della Francesca ou: “o companheiro da argila deste mundo”

ELE devia se chamar Piero dei Franceschi, mas quis a história sobrepor-lhe o nome da mãe (que se chamava Romana de Monterchi)… Ignora-se porque o mestre de Arezzo seja “della Francesca”. Sobre os dados corretos de registro – incluindo seu nome de pia –  pouco se sabe, dizem os especialistas, porque perdidos nas brumas da história. Dos poucos dados existentes sobre a vida (do ano 1410 a 20-1492), uma certeza: era já reconhecido em vida como um mestre, um grande entre os grandes da pintura italiana e continuou influenciando gerações seguintes; frequentador das cortes de Ferrara a Rímini, de Urbino à Roma papal, é no pequeno burgo natal que mais lhe agradava pintar e viver e influenciar… o Borgo San Sepolcro, onde participa da vida política e social e é sepultado.

O que o mantem vivo são seus afrescos do Ciclo de Arezzo, pois continuam a ser objeto de extensa literatura crítica e eterna admiração. O olhar deste pobre fiel, vivendo os desastrados anos do vigésimo século e do início deste XXI, querem expressar o deslumbramento de quem mendiga fé e luz – como na voz do poeta Bruno Tolentino, que expressou tão bem o que essa prosa seca e murcha falha ao tentar o mesmo, no cair dessa noite do 3º. domingo da Quaresma `09:

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Deixai-me celebrar tudo o que morre
abraçado a precários estilhaços,
o mundo de Piero entre pedaços
de cal arruinada, mundo-córrego,
livre, de gestos amplos como torres
erguendo-se sozinhas, como braços
pesados, suplicantes nos espaços
do real…Essa esmola ainda socorre
os mendigos que somos neste beco
curto, obscuro, estreito e sem saída,
o beco dos desastres desta vida.
Deixai-me celebrar aquele seco,
alto, argiloso e duro como esterco,
velho resto leproso, de ferida.

A parede caiada que vai se apagando com as marcas do tempo ainda testemunha a grandeza da oferta que nos dá o toscano, testemunhando até hoje o valor moral de sua arte, a religiosidade popular das cenas eleitas para ser eternizadas pelo artista. Na Construção e Prova da Cruz, revivemos a procissão antiga em torno da cruz.

E eis que do meio da multidão um homem me anuncia com suas mãos postas em prece,historias-da-santa-cruz_piero_detalhe o sentido inteiro dessa fase do ano litúrgico. Basta vê-lo para entender os versos do poeta Bruno e intimidado me nego a rabiscar outros no futuro:

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Entre o instante e a argila vai passando

a doce mão da luz que esfuma e tece
o real outra vez; de vez em quando,
a velha tecelã, quando parece
ceder a sombras e penumbras, desce
pelo outro lado do visível dando-

lhe os laços pelas costas: surge o bando
de vaga-lumes que ela fez, ou fez-se

em torno dela. É assim o claro-escuro
natural às colinas da Toscana,

combinações do puro com o impuro,
e o olhar de Piero é seu grafismo:

nele a equação da luz é quase humana,
grave como o salgueiro sobre o abismo.

E se ao final da vida os olhos do pintor não pudesse captar a luz e as cores da terra natal, sua mente claramente continuava a dizer-lhe o caminho da pintura: “porque o dia/em seus olhos tremia como estrelarezasanta-cruz_piero_detalhe2

E assim, olhos trêmulos e úmidos, cá nos encontramos séculos depois,  aprendendo o caminho da prece comovida e silenciosa…
Ah, claro como a cor
da cinza que ele amava,
o companheiro da argila deste mundo…

+++

Fontes:
Quadro: Histórias da Santa Cruz – afresco do coro da igreja São Francisco, Arezzo, (detalhes e parte do texto ext. de Mestres da Pintura, Abril Cultural, 1978). Poema cit. Tolentino, Bruno. “O Mundo como Idéia“. Ed.Globo, 2001, pág.401.
Mais sobre a história preliminar ao quadro, aqui!
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Festa do Batismo de Cristo

O Batismo. Piero della Francesca

Batismo, Piero Della Francesca, National Gallery, Londres. (c)Corbis Images.

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Se Ucello foi o lúdico profeta
do mundo-como-idéia, o redentor
da luz às cegas neste mundo em flor
foi o velho Piero, o anacoreta
de retorno à cidade por amor.
O mundo, transbordando-lhe a palheta,
era uma exatidão tanto maior
quanto mais perdulária, como a seta
que sobe e sem saber vai aonde for…
Piero della Francesca batizou
o eterno com o efêmero, na cor
das paredes mortais que tanto amou,
pôs sua geometria e sua dor:
seu par de asas frágeis como o vôo.

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Penso, naturalmente, no Batismo,
seu céu de asas abertas sobre o imenso;
ou na Natividade; mas se penso
em tudo o que ele viu penso no abismo,
na argila cor de cinza, e no silêncio.
É do silêncio o estranho imobilismo
do Cristo ressurrecto, aquele intenso
adentramento quieto em cada prisma,
pronto a mostrar a chaga à criatura.
Mas foi nas pedras de uma igreja obscura,
no coração de Arezzo, que Piero
atravessou a adaga do real.
O conceito, a ilusão e o desespero
não puderam cruzar aquele umbral!

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Em Arezzo é o fugaz que se proclama
nas interrupções do luminoso:
o mundo é interrompido como a chama
e é tudo meio incerto como um gozo,
tudo proclamação do duvidoso,
porque as paredes morrem e quem ama
esse acabar-se, escama por escama,
aceita seus vestígios como um pouso.
Piero equilibrou no temporal
a majestade toda do real;
nas paredes mortais daquele templo
tudo vira presença, reticência,
adeus interrompido, cada exemplo
unindo opacidade e transparência.
(…)
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(*) Poema extraído do livro “O Mundo Como Idéia“, Bruno Tolentino, pág. 399/400. Ed.Globo, 2001.