A POESIA – tem alguma serventia?
Há futuro para a escrita? – indagava Vilém Flusser em 2010.
HOJE SIGO PERGUNTANDO-ME, lendo e relendo Flusser, quando decrescente é o número de leitores da Poesia. Confira.
“Se tentássemos escrever uma história da percepção a partir da hipótese de que as cores são percebidas de maneira diferente antes e depois de Van Gogh, ela seria uma história da estética, da experiência. Tomemos a nossa experiência amorosa como exemplo.
“É possível reconhecer em nossa experiência amorosa atual concepções de amor elaboradas em Hollywood, que se baseiam naquelas da poesia romântica, que por sua vez foram elaboradas a partir das dos trovadores. Por trás dessas concepções, encontramos a do amor cristão e, anterior a ele, novamente, a dos judeus e dos gregos, até que suas raízes se percam na pré-história. Nessa árvore genealógica das concepções de amor, podemos constatar ramos contíguos como o do Eros platônico, o do amor intellectualis, de Spinoza, ou do amor fati de um Nietzsche. Essa visão histórica leva, porém, a um tipo de darwinismo estético. Nossa próopria experiência amorosa é comparável à experiência amorosa dos gregos antigos tanto quanto a orelha do mamífero em relação à guelra do peixe; ou é comparável à experiência amorosa dos astecas tanto quanto o olho do mamífero em relação ao olho dos insetos. O modelo hollyoodiano parece ser o mais recente e o maior elo de um desenvolvimento linear : imperialismo estético. Nós percebemos melhor e experienciamos melhor do que todas as culturas anteriores e ‘subdesenvolvidas’. O que nós percebemos é o mais verdadeiro.O modelo hollywoodiano canaliza a experiência amorosa do presente
“Uma vez que sabemos como os modelos são produzidos, como a poesia é feita, isto é, por meio da computação de modelos anteriors com a inserção de ruídos, tal história da percepção não é mais factível. Não temo diante de nós uma árvore genealógica que se ramifica, mas um leque de modelos que se expande em todas as direções, no qual desenvolvem-se ligações transversais entre os modelos particulares. Pode-se falar de uma variedade de percepções ao invés de progresso da percepção; de um complexo sistema de modelos estéticos ao invés de história da estética. O fato de que, hoje, apenas alguns poucos modelos de experiência dirigem nossa vida não deve ser interpretado historicamente (nem politicamente, como a vitória do mais forte sobre o mais fraco), mas ciberneticamente.
“O modelo amoroso hollywoodiano – não o budista nem o da África Central – canaliza a experiência amorosa do presente, porque os canais da mídia são construídos de acordo com um padrão de fundo histórico e imperialista. Após a superação desse padrão, os canais podem se ligar de outra maneira. Se cabos forem introduzidos, por exemplo, nas mídias, elas poderão transmitir modelos amorosos tanto da África Central quanto os hollywoodianos. Para uma adaptação dessa natureza não é necessária uma revolução histórica (uma revolta dos fracos contras os fortes). Semelhante adaptação já se encontra em curso porque a mídia, de acordo com sua estrutura de comunicação, exige ser sintonizada transversalmente. E, por isso, inúmeros modelos de percepção até então reprimidos já urgem agora nos canais que nos alimentam. Nós já percebemos agora de uma maneira muito mais complexa do que as gerações anteriores. Não só nossa vida amorosoa, como também nossa experiência de cores, sons e sabores tornam-se cada vez mais complexas. Hoje, a poesia, no sentido de construção de modelos de experiência, já começa a se desdobrar, para alcançar, em futuro breve, dimensões até então inimagináveis. Não se pode imaginar tudo aquilo que vamos perceber e viver no futuro.
“Falava-se há pouco acerca de imagens com sons e movimentos. Naturalmente, podemos subsumir a língua falada nessa reflexão e dizer que também a poesia em sentido stricto, a poesia como jogo de linguagem, se desdobrará de maneira impressionante graças à sintonização transversal das mídias em forma de imagens que falam. Poderíamos esperar não só uma nova força de criação poética em imagens e música, como também na língua. Todavia, tudo aquilo que valorizamos na poesia se perderia caso dissociássemos a produção poética do alfabeto?(à suîvre….segue).
*****
FLUSSER, Vilém. “A Escrita…”, Trad. do alemão por Murilo J da Costa – São Paulo : Annablume, 2010, p.87/88.
Olá, visitante.
Se você chegou até aqui, tendo pesquisado sobre Vilém Flusser, peço a gentileza de responder à enquete que se segue: https://betoqueiroz.com/2015/09/09/uma-enquete-especial/
Att.
Beto.
CurtirCurtir