Willa Cather (1)


Dias atrás, uma dileta amiga (virtual) me sugere entusiasmada, a leitura de Willa Cather.

Vou ao sebo virtual e ao cabo de alguns dias, eis-me nesta tarde que nos ameaça com uma tempestade real, finalizando a leitura de “A Morte vem Buscar o Arcebispo“.

Agradeço a dica da amiga e recomendo a leitura, ousando emendar sua frase de um texto antigo em seu ex-blog: que se inicia assim:

Tolstói diz a respeito de Dickens “Todos os personagens de Dickens são meus amigos pessoais“.
Claire dizia em 2005: “todos os meus escritores favoritos são meus amigos pessoais. Não os conheço como indivíduos, a maioria deles já faleceu. Contudo eles me falam – como amigos. Cúmplices. Como pessoas a quem amo mesmo quando discordamos. E como eu discordo de Doris Lessing, de Fernando Pessoa, de Bilac – mas meu coração se abre carinhosamente para abrigá-los…“.
Ao final dessa apaixonada leitura, posso afirmar: eu me sinto amigo desses dois personagens humaníssimos e cristãos – os Padres Vaillant e Latour, ou, simplesmente, padres Joseph e Jean, missionários franceses no Novo México, nos desertos do Arizona e nas rochosas do Colorado.

De Willa Cather, disse mestre Otto Maria Carpeaux que “o catolicismo foi elemento significativo de sua arte”, no que posso adicionar que é com sua arte que Willa aproxima o leitor de essência mesma do Cristianismo, na escolha de personagens de carne-e-osso que são capazes de entender o milagre da vida, em meio às provações do dia-a-dia, no cotidiano duro da vida de missionários.

A melhor fotografia do Padre Vaillant no romance está num trecho das páginas 170-172:

O bispo Latour (padre Jean) “embora trabalhasse com padre Joseph (Vaillant) havia já vinte e cinco anos, jamais lograra solucionar as contradições de sua natureza. Simplesmente as aceitava, e, quando Joseph se ausentava por longo tempo, dava-se conta de que as amava todas. O seu vigário era um dos homens mais verdadeiramente espirituais que jamais conhecera, embora estivesse tão apaixonadamente apegado a tantas coisas deste mundo. Por mais que gostasse de comer e beber bem, não apenas observava rigorosamente todos os jejuns da Igreja como jamais se queixava da pobreza ou escassez do passadio nas suas longas jornadas missionárias. A inclinação do padre Joseph pelo bom vinho poderia ter sido considerada falta num outro homem. Mas, de constituição franzina, ele parecia necessitar de algum forte estimulante físico que lhe suportasse os súbitos arroubos de vontade e imaginação. Repetidas vezes, o Bispo vira um bom jantar, uma garrafa de clarete, transformarem-se, a seus olhos, em energia espiritual. De um pequeno festim, que tornaria outros homens sonolentos e desejosos de repouso, o Padre Vaillant saía revigorado, e trabalhava durante dez ou doze horas com aquele ardor e absorção que davam resultados tão duradouros.”
(…)
Mas “nada do que se pudesse dizer do Padre Vaillant bastaria para explicá-lo. O homem era muito maior do que a soma de suas qualidades. Acrescentava um fulgor a qualquer espécie de comunidade humana em que lhe acontecesse ingressar. Um hogan Navajo, qualquer pequeno amontoado, abjetamente pobre, de choças mexicanas, ou a companhia de Monsenhores e Cardeais em Roma – dava tudo no mesmo“.

A paisagem recriada por Willa Cather é memorável neste livro. Os leitores viajamos com os dois padres missionários e temos o céu imenso da região por testemunha da dedicação cristã e de suas lutas às vezes inglórias contra os eventos naturais (neve, tempestades de poeira, imensas extensões desérticas, e os canyons…), de suas amizades com os Navajos e os Mexicanos da perdida Arquidiocese do Bispo Latour e das pedras de Santa Fé e a sua tão sonhada Catedral à francesa (em estilo românico do Midi France).

A viagem de volta a Santa Fé era coisa de umas quatrocentas milhas. O tempo alternava entre tempestades de areia enceguecedoras e sol brilhante. O céu estava cheio de movimento e mudança, ao passo que o deserto abaixo dele se estendia monótono e parado; e havia muito céu, mais do que no mar, mais do que em qualquer lugar do mundo. A planície ali estava, sob os pés do viandante, mas quando se olhava em derredor, só se via um brilhante mundo azul de ar ardente e nuvens movediças. Alhures, o céu era o teto do mundo, mas ali a terra era o chão do céu. A paisagem por que o viandante ansiava quando estava muito distante, a coisa que o cercava de todos os lados, o mundo em que na realidade vivia era o céu, o céu!

Cavalgando pela estrada de Albuquerque a Santa Fé, o jovem bispo Jean-Marie Latour se perde em meio a árida região do Novo México central, perde-se, tem sede e se inspira na Paixão de Cristo (no grito arrancado ao Salvador na cruz: “J’ai soif!“) para prosseguir em busca de seu vicariato e de sua missão. Ao final do livro, o arcebispo Latour contempla o pôr-de-sol, nas proximidades de sua catedral firmada na pedra de Santa Fé, deixando a imaginação às recordações de toda uma vida dedicada à causa da Igreja numa missão distante de sua França (distante do seu Puy-de-Dôme), sem perspectiva nas lembranças, desligado do tempo, do calendário e assim resume Cather:

– “Não tardaria que se desligasse do tempo marcado no calendário, que já deixara de contar para ele. Estava postado no meio de sua própria consciência; nenhum dos seus estados de espírito pregressos se perdera ou fora esquecido. Estavam todos ao alcance da mão, e eram todos compreensíveis.”

Como imagino, compreensível era também a idéia de que um dos pensamentos de Pascal que fizera o Bispo construir (incentivando os novos padres de seu vicariato a plantarem árvores) tantos jardins em meio à aridez, era uma luz em sua vida: “o Homem se perdera e fora salvo num jardim“(*).

Foram assim os últimos dias do padre Latour, sob o poder das lembranças, as leituras de Santo Agostinho, Madame de Sevigné e de seu conterrâneo Auvergnais, Pascal, seu favorito… Sob o ar do Novo México, o mesmo ar que por tantos anos lhe fora tão necessário, pois, “aliviava o coração e, de mansinho, bem de mansinho, abria o ferrolho, corria os trincos e libertava o espírito do homem para o vento, o azul dourado, para a manhã, a manhã!

***
Estou diante de um belo livro, constato. E de uma grande escritora da qual desejo ler mais livros.
– Se a pergunta de minha amiga há quase três anos atrás era: “E a cada vez que apanho um ‘novo’ para ler, inédito para mim, existe a possibilidade, a pergunta: será que vou fazer mais um amigo?“, hoje a minha resposta é com certeza:
– Willa Cather é amiga deste leitor apressado e desatento, mas amorável.

A tempestade que se anunciava se esvai e a tarde cai em meu jardim à espera da enchente de São José, neste nosso país com o verão mais chuvoso de que tenho notícia. Posso me sentir só mas o sinete do anel do padre Vaillant (valente, bravo, não por acaso!) vem me lembrar porquê: “Auspice Maria” (lat. que significa “Sob a proteção de Maria”).

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Fonte: “A Morte vem Buscar o Arcebispo”, Edit. Guanabara, trad. do poeta José Paulo Paes, 1985; “História da Lit. Ocidental”, O.M. Carpeaux, pág.1969, vol. 7′; (*)”Pensamentos”, Pascal, pág. 168, 553 – “Jesus está em um jardim, não de delícias como o primeiro Adão, onde este se perdeu e com ele todo o gênero humano, mas num jardim de suplícios, de onde se salvou e com ele todo o gênero humano.”
(Vinhos) Clarete, como se diz hoje, é a forma usada para descrever os vinhos tintos de Bordeaux. Em geral, grafado com o “t” mudo: Claret.
A citação ao ex-Blog da Claire.

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